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Os leitores de Uma vela para Dario ainda não conseguiram discernir quem seria a pessoa que carrega o indefectível guarda-chuva que um cidadão comum carrega no braço esquerdo. Percebe-se que ele tem pressa. Dobrada uma esquina, vem mais lento e trôpego, roçando uma parede conhecida. Parece que ele vem deslizante e escorrega. Senta-se em um tipo de pavimentação. A seguir, apoia-se em uma parede enxovalhada e cuida de proteger o cachimbo inglês que carrega.

Dario tem muita pressa. Alguns falantes insistem em saber se o transeunte estaria passando mal ou bem. Na verdade ele parece sentir-se bem, mesmo descansando o cachimbo. A turma dos sádicos pensa na complicada saúde de Dario. Aventura-se às mais variadas conjecturas. Todos apontam para a possiblidade de ser uma certa doença, mas também remetem a outras. A unidade da possível doença ganha. O fato é que a de Dario só piora. E a massa urbana quer ver o pior: um desfecho cômico ou trágico.

O desconhecido agora se percebe com uma sardinha fisgada na Praça Tiradentes. Alma piedosa houve por bem que todos se afastassem do idoso, para que possa respirar melhor. É hora de aparecer um sujeitinho de bigodinho fino, que pede compreensão para o mal-estar cada vez mais do lado do nosso personagem. Esta é a Curitiba impiedosa. Todos querem meter o bedelho, mas ninguém faz nada.

É cruel, muito cruel. O sujeito do bigodinho é quem passa a organizar o atendimento a Dario. É bom que saibam que vários pertences dele já sumiram. Dalton, o autor, nunca disse, mas esse comportamento já é familiar do cidadão curitibano. É típico comportamento dos cidadãos devoradores de pinhões. Ainda típico comportamento da “joia” do primeiro planalto é o de rir da desgraça alheia.

Imaginem vários curiosos, erguendo-se pelos pés para somente ver melhor a cena. Esta é a Curitiba em que o cidadão se planta em uma esquina para assistir a acidentes automobilísticos. O meu local preferido era o cruzamento da Silva Jardim com Rua Brigadeiro Franco. Ver a desgraça alheia sempre foi o esporte favorito do cidadão autóctone. Certa feita, lembro uma empregada doméstica, que quer se jogar do Edifício Asa. O povaréu se reúne embaixo. E acaba por provocar o suicídio da doméstica. O requinte é sádico: antes de a mulher se jogar, um sujeito do povo chega a calcular o ponto da queda e a marcá-lo a giz. Esta é a Curitiba dos nossos sonhos.

Voltando ao lugar onde Dario agoniza, observamos que o infeliz continua relegado pela massa, que aguarda o desfecho. Quanto mais piora, mais gente vem constatar. Esta marca do “curitiboca” é uma das mais contundentes quando se fala em opinião.

A imprensa chega e, com ela, a polícia, para evitar tumultos. Nessa hora, Dario só consegue que o tratem bem. Mas esta é a Curitiba em que os malvados são gatunos, pois os pertences do infeliz vão sendo surrupiados. Dalton, mais de uma vez, revela assim a acentuada aversão pelas classes baixas da cidade. Esta é a marca indelével do cidadão da Nossa Senhora da Luz dos pinheirais para entender esta Curitiba: é preciso mergulhar em seus estereótipos – o Esmaga, o Baazza, a Gilda e a Maria do Cavaquinho.

A cena do tumulto prossegue. Querem ajudá-lo; mas por meio de quem? Repararam que os pertences do desconhecido continuam sendo afanados. Ele adoece gravemente e se prepara para entrar em óbito. O povo quer ver sangue. Almas piedosas tentam cuidar do candidato a cadáver. Mas a saúde está se deteriorando. Algumas pessoas que estão ali para assistir à cena a partir das janelas chegam a colocar almofadas para acomodar os cotovelos. É um imenso circo que vai se abrindo: elefantes, hienas... para, com a licença de Dalton, trazer mais atrações para o “Coliseu” de Curitiba.

Dario vai piorando e finalmente morre. Mas uma alma bondosa coloca o paletó dele, dobrado, sob a cabeça. É um bizarro sinal de que tudo caminha para um desfecho trágico.

Alguns curitibanos resolvem trazer o Luiz Geraldo Mazza para discorrer a respeito de temas universais. Com quem? Com os populares, é claro! À medida que Dario vai morrendo, há cada vez menos pessoas para apreciar o “show da vida”. Muitos já começam a debandar com ele ainda vivo. O sermão que dom Pedro Fedalto seleciona para ilustrar a tragédia do desconhecido é tocante. O tempo vai passando, o carro dos bombeiros revela-se inadequado para lidar com o morto. É bom lembrar que os populares chegam a buscar um táxi para que ele seja atendido. O táxi o leva ao pronto-socorro, mas Dario é gordo e as pessoas já estão cansadas do espetáculo de horrores. A certa altura, o taxista pergunta à queima-roupa: “Gente! Não vamos conseguir levá-lo ao plantão da saúde pública”. O homem já bateu as botas há algum tempo, mas a massa se retira aos poucos, pois a festa já acabou.

Dalton Trevisan é quem repara nos novos objetos do agora defunto. É claro que deverá haver lá almas boas entre mais ou menos 200 pessoas que ajudam, tamanha é a convicção de quem cumpriu um dever. A turma dos bares da frente volta aos seus afazeres etílicos e o jogo de sinuca vai continuar. Estas são atitudes de Trevisan para entender o frio e emotivo mundo curitibano, onde acontecem coisas do arco da velha. Há um malandro que ainda pergunta: quem pagará a conta do Rabecão? Por quê? Porque agora o viajante, enfim, já aceita as opiniões e juízos que se disseminam sobre a cidade de Curitiba. A Guerra do Pente convulsiona a cidade inteira.

Foi algo aterrador porque as figuras emblemáticas da city,depauperadas, omitem-se e se acovardam. Não podemos entender esta Curitiba das dezenas de bordéis que colhem e coalhavam com o tráfico de pedestres pela sisuda Barão do Rio Branco. Não tenho o mínimo pudor, pois é a rua que vem da Estação Ferroviária até a Rua XV de Novembro, poluída por hotéis de alta rotatividade. Isso porque quem chega a Curitiba, aí pelos anos 60, desce na cidade e, é claro, ocupa.

Perdemos de vista o drama sofrido por Dario, que já morreu e foi pro beleléu. A multidão se dispersa. O espetáculo do Dario, que não era da cidade, termina com seu derradeiro ato, informando que a causa da doença é desconhecida. A patuleia vai para casa nas raras jardineiras e lotações que transitam pela cidade, já tem uma relação mais cordial com a terra dos comedores de pinhão, apesar de a maior parte dos habitantes serem de origem eslava e italiana.

Esquecemo-nos mesmo do Dario! A esta altura, a equipe da Delegacia de Homicídios já emite laudo de causa mortis. Somos uma cidade pacata, transtornada, vez ou outra, por assuntos e eventos daqueles do tipo infeliz interiorano: o Dario “sem velas”. Conta-se que era muito estranho. Já a relação de amor e ódio entre o autor e os cidadãos foi­ se arruinando aos poucos. Não podíamos deixar o grande Dalton sem lhe tecer elogios pelo grande contista que é. Este narrador e o autor nos encontramos algumas vezes, especialmente na lendária Confeitaria Schaffer. Quando passo pela Rua Ubaldino do Amaral, vejo lá no fundo do quintal uma figura meio báltica que depena uma bem nutrida corruíra. É preciso também entender que esta Curitiba não só é real como poderia liderar, como de fato liderou, os estereótipos e símbolos da cidade. Peço ao autor que não se esqueça de homenagear duas pessoas: o sr. Malek, que tem uma loja de utilidades domésticas na entrada da General Andrade; e meu amigo e editor-livreiro Aramis Chaim.

E o Dario? Há milhares deles perambulando pelos recantos e lugares míticos, como a Boca Maldita. Ele deve estar sendo velado em uma capela do Buraco do Tatu, a melhor carne de onça da cidade.

Não posso reclamar de Curitiba porque ela foi a vaca leiteira que amamentou a mim e ao dr. José Sanches, pediatra que chega a trocar as fraldas dos filhos bastardos Rômulo e Rêmulo. Minha homenagem sempre estará à frente, tamanha a admiração que tenho pelo amigo das corruíras e cambacicas. Que todos cedam às forças divinas – e o nosso Dario, que só ficou com uma celebração post mortem.

Uma modesta carta aberta a Dalton Trevisan

Caro Dalton! Na perseguição da síntese crítica, esqueço-me de comentar tua linguagem única. Sei em que uns países vendem-se mais livros, e noutros se vende menos Aqui, por exemplo, no torrão natal. Nos Estados Unidos vendes bem. Tua carreira é tua vida. Sei que compões sozinho, um grupo à parte; não gostas (sabemos) do academicismo provinciano. Por fim, pergunto: Dalton, quem é melhor? O Tezza, o Jacques Brandt ou o Rafael Greca? Ufa, cansei! Vou para casa na velha jardineira.

Caro Dalton, muitos de nós, teus acólitos, bebemos na fonte do teu saber. Não ignoramos que tenhas profundas mágoas com Curitiba e seu underground, como o submundo da Cruz Machado e de outros inferninhos. Cremos que tua literatura, que nos orgulha, tenha raízes profundas neste povo mesclado. Teu desamor pela cidade de todos nós, de Jaime Lerner, do mistureba, do rato que comanda aquela tua barata que usa rímel nos cílios e outros tantos que maquiaram a face clássica de Curitiba. Fria, úmida, nebulosa, a grande urbs, no entanto, se desenrola a teus pés.

Gostaria de assumir teu desafeto com a capital, mas há muito não comes pinhões assados em foguinho de grimpas secas de alguma Araucaria angustifolia. Há tempo não consegues deixar teu tugúrio e flanar pelos shopping centers. Mas, Dalton, Curitiba te ama. E te levará nosso presente de Natal até as profundezas do teu lar ancestral. Não te irrites com a Curitiba Perdida, com os ícones culturais. Aceitamos a solidão de tua casa primal, mas nossa opção seria ter a presença de teu eu não literário. Sabemos que reescreves textos, como no caso de Uma vela pra Dario. A cidade, no entanto, te dá mais amor que descaso.

Sempre foste modernista. Dei aos poetinhas e beletristas de plantão a ocasião de estudar rimas toantes e assoantes, com os chamados habitantes da Academia, tenazes e destemidos. Perdoa a Academia. Perdoa a mim, que também lá milito (com parca presença, é certo). Feliz Natal e felicidades ao nosso guru, mestre em fazer haicais do tamanho das corruíras. Até a vista! A brandura de Deus para os meus e para os teus.

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