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Quem se recorda desse par romântico: Ceci e Peri, do livro de José de Alencar O Guarani? Ele encantou gerações, mesmo que se diga que a obra não passa de um pastiche dos congêneres europeus. A figura central da narrativa é dom Antônio de Mariz, um fidalgo português que constrói uma casa fortificada em meio à mata tropical do Rio de janeiro. Comenta-se que o fidalgo ajudou a fundar a cidade, em 1567.

O Brasil começa, nessa época, a receber os imigrantes – portugueses, em sua maioria. O meio é extremamente agressivo, porque estoura uma guerra entre os guaranis e os tamoios. Cecília é filha de dom Antônio de Mariz. É assediada pelos moradores da casa-fortaleza do pai, erigida nos moldes medievais. Os aventureiros que vagam por essas plagas são combatentes ferozes. Essa residência colossal situa-se na Serra dos Órgãos, perto do Rio Paquequer, tributário do Paraíba. Os principais lances do enredo ocorrem nesse lugar. A casa é um cofre de maldades.

Como se sabe, o Romantismo resgata toda a estrutura do mundo da Idade Média europeia, até a vassalagem. O casarão abriga uma multidão heterogênea de personagens: aventureiros, sacripantas, biltres, assassinos, ambiciosos e cruéis. Não esqueçamos que, naquela época, só existia vida civilizada ao longo da costa. A mata luxuriante segue densa, sombria, perigosa e mortal. Lealdade é a palavra que define o comportamento desse bando de gauches na vida, buscando metais preciosos. A esses maus elementos podemos dar vários nomes afins: assassinos, ladrões, ladravazes, cruéis e sádicos. Esses adjetivos impactam sobre o conceito dessa laia.

Nos arredores, habitam tribos inimigas. Eis que surge o protagonista, ou herói, que ronda a casa; vendo Cecilia, o selvícola fica embasbacado. Peri é um índio guarani. Os dois lentamente vão se aproximando até se apaixonarem. Em um momento de calmaria, Peri, um índio destoante, convertido, fala bem o português, é casto e devoto da Virgem Maria. Trata-se de um personagem embasado nas teorias de Jean-Jacques Rousseau, criador de uma frase de efeito. Segundo ele, os aborígenes vivem de modo primitivo: somente os indígenas são bons – em francês, le beau sauvage (“o bom selvagem”). Neste caso, incluímos outros romances em que o indígena – além de O Guarani, Ubirajara e Iracema – vive em harmonia com a natureza.

O pensamento de Rousseau sobre o “bom selvagem” se ajusta ao caráter e comportamento de Peri. Somente o homem ainda não corrompido pode ser comparado ao índio, gentil, educado, bom, sensível, amoroso e religioso. Ele usa um crucifixo e abandona os ritos pagãos da tribo. Peri passa a proteger Cecilia; uma vez a salva, ao segurar um rochedo solto que ameaça cair sobre ela, que repousa em um relvado. Por onde anda, a jovem é seguida como uma sombra. Ele é um índio “civilizado”. É correto afirmar que as teorias do Iluminismo foram usadas para educar o jovem. Só o silvícola instruído segundo esses princípios destoa do meio em que vive. É possível chamar a história de um pastelão romântico, porque todos os clichês estão presentes.

O pensamento de Rousseau sobre o “bom selvagem” se ajusta ao caráter e comportamento de Peri

Enquanto Peri protege Ceci, os aventureiros, chefiados por Loredano, planejam destruir a casa de dom Antônio de Mariz. Os bandoleiros planejam raptar Ceci, mas o empecilho é Peri, que a protege como um segurança. Pela proteção que dá a Ceci, seu pai fica grato ao índio apaixonado. Todos lhe são gratos. Peri é uma enorme cisterna de sentimentos nobres. Sua vida consiste em proteger a amada.

Há uma conspiração: quando Ceci vai se banhar, vigiada por dois índios aimorés, eles pretendem matá-la, mas Peri age mais rápido e os aniquila a flechadas. Uma índia aimoré foi testemunha desse fato; volta para a tribo e conta tudo. Em meio a tantas peripécias, Loredano insiste em matar toda a família e raptar Ceci. Mas há um formidável obstáculo: a férrea proteção que Peri dedica à amada. Ele não a abandona; fica vigiando-a. Súbito, salta da história o personagem Álvaro. Ele ama Ceci, mas não é correspondido.

As diferenças entre os autóctones e os alóctones vão seguindo num crescendo. Frustrado, o jovem fidalgo desiste de Ceci, mas vai se envolver com Isabel, sua prima. A guerra contra os aimorés se intensifica. Eis que Peri, em um ato sublime de amor e heroísmo, toma a decisão de ingerir um veneno letal. A guerra recrudesce. Parece uma solução simplista ser devorado pelos índios canibais. Caso todos se alimentem dos restos mortais do índio guarani, ninguém sobreviveria. Seria uma forma de acabar com a guerra. Mas ele é salvo por Álvaro, perante o desespero de Cecília. Peri toma um antídoto e vai enfrentar sozinho toda a tribo inimiga. Álvaro morre em combate. Isabel se mata. Começam a se fechar as cortinas dessa barafunda bélica. Os fatos se precipitam pelas ladeiras da insensatez. Por fim, Peri e Ceci, em meio a terríveis combates, veem os aimorés incendiarem a fortaleza de dom Antônio, responsável por explodir o castelo, consumido em chamas. Mariz morre, após ser acusado de traição. Por fim, os jovens enamorados se evadem em uma canoa, vão refazer a vida e curtir sua paixão em outras paragens.

A cena final é de uma dramaticidade típica de um pastelão romântico. O Rio Paquequer transborda por causa das chuvas e Peri comete um novo ato heroico. Os dois estavam refugiados na copa da palmeira. A água ameaça alcançá-los. Peri mergulha no rio e arranca a árvore esguia pela raiz (dizem as más línguas que o esforço dispendido por Peri foi tão forte que a jovem lusitana Ceci jamais poderá ter filhos). A palmeira boia e os dois somem ao longe.

Lendo-se com cuidado, vamos perceber que a obra contém todas as características de um romance histórico. Ao longo dos acontecimentos, vemos uma divisão clara entre os personagens maus e os bons, típicos de José de Alencar. O romance romântico peca pela previsibilidade; quando li o livro, aí pelos meus 16 ou 17 anos, antevi o desfecho da narrativa. Este livro me marcou pela filosofia que contém, em forma de drama. O índio Peri é o herói, cujo caráter não tem jaça. Uma caraterística do estilo de época romântico: o protagonista é sempre puro. Outro rótulo, que se pode apor aqui, é de que o herói sempre vence e o bandido sempre leva chumbo. O texto é muito descritivo, devido à mata virgem, por onde esvoaçam os sonhos alados do protagonista.

Há adjetivos e descrições em abundância. Poderíamos até dizer que o Romantismo é maniqueísta: de um lado estão os heróis; do outro, os vilões. O amor é tão açucarado que mela nossas mãos ao folhear as páginas. Ao fundo, há uma marca inarredável da escola literária. O homem somente é livre caso viva em contato com a natureza. Alencar veio de Mecejana, no Ceará, para o Rio. Essa viagem de barco lhe propicia ver e se deslumbrar com a exuberante vegetação tropical. Essa visão vai acompanhá-lo na sua poesia indianista. Na prosa, Alencar nos mostra personagens que vivem mergulhados em uma natureza dócil, puros e felizes. O homem só pode ser feliz no campo. Iracema, Ubirajara e O Guarani contêm páginas imortais de amor ao torrão natal. O leitor descortina esta constatação quando mergulha na naturalidade com que Peri vive nesse paraíso do Éden. Para Alencar, o amor entre Peri e Ceci sobe às nuvens por colocar o sentimento acima da razão. Para reforçar o aprendizado dos alunos, é preciso dar exemplos dessa poesia. Segue um exemplo lírico de Gonçalves Dias, em Ainda uma vez – adeus:

“Enfim te vejo! — enfim posso,

Curvado a teus pés, dizer-te,

Que não cessei de querer-te,

Pesar de quanto sofri.”

A última fala de Peri para Ceci foi uma pérola romântica dessas, enquanto a palmeira some no horizonte, com os dois acomodados na copa. E os beijos deles tornam-se libélulas que adejam em torno do cocar do índio guarani. Amparados pela mãe natureza, desaparecem no horizonte.

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