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Não tenho nenhuma dúvida de que dentro de cada um de nós há um leitor à espera do livro aguardado ou incógnito. O primeiro contato com o livro, seja ele de que tipo for, é absolutamente inesquecível. Lembro bem: meu saudoso pai, lá na distante aldeia de Bemposta do Douro, Conselho de Mogadouro, distrito de Bragança, nordeste de Portugal, possui alguns livros datados de mais de 300 anos, que nos lê invariavelmente ao fim do dia, comigo sentado em sua perna direita; o meu irmão, José Joaquim, na outra, brincando de cavalinho. Ficamos fascinados com o que vemos nas páginas que ele folheia: extraordinárias naves gregas trirremes e birremes em acalorado confronto com a esquadra dos persas e dos medos na batalha de Salamina. Depois de nos mostrar as gravuras, narra detalhes que pulsam daqueles barcos que têm um esporão submerso na proa para afundar as naves inimigas. Os combates que se travam vão enriquecer as guerras entre gregos e persas. Delinearam também, em nossa imaginação, a fúria, o som e a beleza dos tempos idos.

Para se iniciar um leitor, ainda na infância, é preciso narrar com alma, dando às palavras mais força semântica e sonoridade

Apesar de em menor número, os gregos contam com a coragem de seus soldados e a perspicácia do comandante Temístocles, que ardilosamente dissemina boatos para que os persas caiam em uma emboscada mortal. Isso só foi possível porque a enseada de Salamina é estreita e as naves que lá entram ficam sem saída, porque têm dificuldades de manobrar. A diferença de forças entre gregos e persas é brutal: 1,5 mil naves medas e persas contra 300 da coligação de Atenas e Esparta. É um choque de forças titânico. Ao fim dos combates, o triunfo é absoluto. Desta forma, mais uma página é acrescentada aos manuais de história, repleta de sangue, audácia, coragem e perspicácia. Uma vez mais, os Titãs, do alto do Olimpo, decretam a vitória dos povos helênicos. Enfim! A mítica Hélade (de Helás, Grécia) prosseguirá em sua caminhada épica pelos caminhos íngremes das páginas do historiador Heródoto.

Nossas cabeças, recheadas de maravilhas míticas e atos de heroísmo, têm dificuldade de ceder ao sono. O pai nos cobre e recita uns versos do poeta brasileiro Gonçalves Dias, que admira muito, embora viva isolado em uma aldeia portuguesa, também mitificada pelo imaginário dos celtas e suevos. Como soubemos depois, ele possuía uma antologia da literatura brasileira. Os versos são do poema I Juca Pirama.

“(...) E se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente:
Meninos! Eu vi! (...)”

Outra obra da Antiguidade que povoa nossas fantasias é a epopeia Anábase, de Xenofonte, ou a “retirada dos 10 mil”. Esse relato épico se concentra na famosa incursão desse exército grego, reduzido, mas altamente treinado, que, com suprema coragem e audácia, invade o coração do império medo-persa. Os combatentes gregos voltaram após vários combates que duraram meses, cobertos de glória. E assim ocupam um lugar na história. O poema é um retrato dramático do triunfo da valentia e da determinação. Ainda hoje essa obra encerra preciosas lições da arte da guerra.

Os livros antigos que há em casa não são muitos, mas são suficientes para nos lançarem na ampla arena da leitura. Quase todos esses livros são muito, muito antigos, mas há alguns infantis mais recentes. O pai sempre diz que em lares em que não há livros não há almas, e que quem lê tem asas para voar rumo às paisagens da imaginação. Eu e meu irmão só vimos de relance um livro infantil, na mão de um garoto, filho da senhora Aninhas, professora e dona do único armazém da aldeia. Lembro um desses livros, O Reino do Leão, de Pedro Boucinhas, que se passa na África Portuguesa. Ficamos deslumbrados com as figuras e desenhos de animais que jamais pensamos existirem: leões, guepardos, leopardos, elefantes, girafas... A África era, então, um lugar nebuloso e quase desconhecido, porque as primeiras expedições estavam apenas no início. Quando papai nos falou que o clima da África é tão hostil que se pode assar carne sobre uma pedra qualquer, transformada em enorme brasa pelos raios ardentes do sol tropical, ficamos estarrecidos e maravilhados. Lembro – e como lembro! – desse livreto que traz os animais exóticos e selvagens para a brancura de suas páginas.

O fato insofismável é que as leituras feitas pelo nosso pai deixaram marcas indeléveis em nosso caráter e imaginação, além de podermos saborear as palavras, as frases, os períodos de histórias repletas de façanhas e aventuras. Aí nos demos conta de que quanto mais líamos mais melhorávamos no ditado, na redação, no vocabulário e na gramática. Os mundos descortinados pelos livros nos fazem pegar um e o ler até o fim, sobre os galhos de um olmo, árvore ibérica que, para nós, é sagrada. Aboletados em seus galhos, viajamos para onde queremos. Nossos horizontes se confundem com o que vemos do topo de um livro ou de um sobreiro (a árvore da cortiça). Como disse, para se iniciar um leitor, ainda na infância, é preciso narrar com alma, dando às palavras mais força semântica e sonoridade. O brilho vem da voz arrebatada de nosso pai que revive sua existência ao nos pôr em contato com o mundo além dele: o vasto mundo dos livros.

Na odisseia dos livros e da leitura, é impossível não citar o escritor alemão do século 19 Karl May. Ele morava em Hamburgo, em cujo cemitério jaz em paz. Esse homem prolífico escreveu uma obra única, porque era universal. Redigiu mais de 300 livros, cujos contextos e conteúdos agregam os mais ignotos pontos do planeta, incluindo o Novo Mundo. Lembro alguns: a saga de Winnitou, em quatro volumes, cujos personagens são esse índio pele-vermelha e um branco cowboy, apelidado de “Mão de Ferro”. Essa série desbrava para nós os Estados Unidos, especialmente o mundo do Far West, com seus usos e costumes. Os dois companheiros exibem a riqueza e a violência de uma terra lendária.

Lembro ainda de mais duas obras: uma se intitula Pelo Curdistão Bravio, que nos faz ingressar em uma terra, na época, totalmente desconhecida, no antigo Oriente Médio. O livro traz sagas e histórias que fazem nosso cérebro soltar faíscas. O outro (falo dos que mais me tocaram a alma e a fantasia) tem como tema a revolta do Mahadi, cujo cenário foi uma guerra travada entre os guerreiros desse líder muçulmano e o bem equipado exército colonial britânico. No centro da batalha está a cidade de Cartum, no Sudão, bem na junção do Nilo Azul e do Nilo Branco.

Assim fomos formando nossa personalidade, caráter, cultura, visão de mundo. Os fatos que, por fim, redesenham nossa vida e conformam uma alma peregrina.

Agora sabemos por que há pessoas que não precisam viajar muito; outras estão “enraizadas”, ao pé da letra. E, agora, o fato mais intrigante: o escritor Karl May jamais saiu da Alemanha. Quando forem a Hamburgo, façam-lhe uma homenagem. E perguntem: por que ele realizou essa façanha? Ora! Por causa dos livros que leu!

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