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O crítico norte-americano Harold Bloom é responsável pela afirmação de que os clássicos dos diferentes países, pelo menos na Europa Ocidental, produzem um efeito colateral assombroso. Para o crítico, várias línguas nacionais se consolidam a partir de obras-primas e clássicas. No que tange a Portugal, por exemplo, a consolidação da língua lusitana ocorre em torno do clássico e epopeia mundial, Os Lusíadas.

Cumpre esclarecer que essas obras coincidem com momentos de apogeu político e econômico. Até a redação d’Os Lusíadas, Portugal possui uma gama de autores, em vários setores da vida sociocultural, que propiciam o surgimento da epopeia de Vasco da Gama indo para as Índias e sua cristalização em uma obra de alcance mundial.

A língua portuguesa, na época, abandona os resquícios daquela que se fala em fins da Idade Média, em obras como a de Gil Vicente – especificamente seu importante e nascente teatro, que carrega consigo um olhar sobre a cultura medieval, o caráter social e religioso da sociedade portuguesa moderna que dispara os primeiros passos na direção da glória ultramarina. Com as descobertas mundo afora, Portugal se torna o “genitor” da globalização e responsável pela criação do primeiro Estado moderno, centralizado na figura do rei/monarca. Seu pioneirismo possibilitou a fundação de Sagres, a primeira escola naval e de cartografia do mundo. A arte da navegação oceânica não tem mais segredos para os nossos “patrícios”.

Em outro campo, Gil Vicente, ao introduzir seu teatro na corte real portuguesa, torna-se, digamos, o precursor de um novo modo de falar e escrever (O dolce stil nuovo – “doce estilo novo”). Outro poeta da época, Antônio Sá de Miranda, busca esse “renascimento” na Itália. A obra de Gil Vicente brilha no teatro cortesão onde despontam seus autos, mistérios, sátiras, farsas e comédias.

Aqui, nas plagas da Terra de Vera Cruz, o tema “obras fundadoras de uma língua nacional” é objeto de acirradas controvérsias

Dessa forma se prepara o advento, em grande estilo, da obra épica de Camões já citada. A linguagem d’Os Lusíadas virá a constituir a base da língua nacional, como costuma acontecer em países proeminentes na história social e política. Falamos, é claro, da literatura europeia. Os Lusíadas estão para Portugal como a Divina Comédia de Dante Alighieri está para a Itália. Como o grande épico nasce e vive em Florença, o dialeto florentino passa a penetrar nos dialetos do norte da Itália. O cristianismo deve sua consolidação na Europa à grande difusão da notável epopeia que é a Divina Comédia. Como se vê, o mesmo ocorre com o surgimento d’Os Lusíadas entre a sociedade que frequenta a corte de Portugal. Segundo Bloom, o fenômeno é típico de países que experimentam os mesmos papéis de Dante e de Camões.

Há muitos países cuja emergência de uma língua nacional se deve a outros fatores. E outros cuja sociedade meio engessada não detém cacife para consolidar e disseminar sua língua nacional pelo mundo (como, aliás, fez a Inglaterra colonial-imperialista). O leitor talvez ignore que a língua portuguesa, herdada da língua galega na Península Ibérica, foi língua oficial do mundo ocidental e usada até em tratados internacionais. A moeda portuguesa do século 16 foi também moeda mundial: o dobrão e o cruzado. Camões passa a simbolizar a nacionalidade lusitana, ainda hoje celebrada em 10 de junho. Os Lusíadas são o símbolo de um povo heroico e base da língua que se fala hoje tanto aqui no Brasil como em Portugal. O que nos diferencia é o sotaque.

Aqui, nas plagas da Terra de Vera Cruz, o tema “obras fundadoras de uma língua nacional” é objeto de acirradas controvérsias. O fato envolve várias questões, como a façanha de outras línguas (autóctones e alóctones) terem se disseminado pelo território do Brasil. O consenso é pouco provável. Os críticos e autores que surgem timidamente no alvorecer da era colonial trazem a reboque várias influências. Da literatura de catequese até os escritores de informação, formação, de história, a discussão se adensa. Pero Vaz de Caminha agita o lago parado da terra selvagem e sem nenhuma tradição. E dispara o primeiro documento descritivo sobre a terra do pau-brasil: a sua famosa Carta de Pero Vaz de Caminha.

As primeiras manifestações da nossa literatura, socialmente falando, são as obras de dois autores barrocos: a poesia satírica de Gregório de Matos Guerra e Os Sermões, do padre Antônio Vieira, justamente sediados na capital do primeiro e único vice-reinado de Tomé de Souza, sediado em Salvador da Bahia. Esses dois expressivos autores da literatura “brasuca” até podem entrar em uma disputa por essa primazia, mas há opositores.

Na verdade não há consenso, como já se disse. Gregório até pode ser considerado, na primeira fase colonial, forte candidato a arauto do português barroco que já expressa tensões sociais, políticas e econômicas da nascente sociedade brasileira. Ele é satírico mordaz, irreverente e “vida torta”, apelidado de “Boca do Inferno”. É assunto deveras polêmico. Há pontos a favor de um e de outro.

Há mais alguns candidatos de peso (é preciso lembrar que os candidatos provêm de vários pontos e épocas do país), como, por exemplo, o gigante Euclides da Cunha e seu soberbo Os Sertões. Uma obra singular que capta em prosa, de maneira épica, os conflitos e tensões de um Brasil (especialmente do Nordeste) dividido ferozmente entre o governo central e as tropas andrajosas de Antônio Conselheiro. Esse entrechoque vai gerar uma guerra fratricida, a Guerra de Canudos, vertida para uma língua portuguesa carregada com as características daquela cultura sublevada. Já pensei muito sobre a questão e realmente a prosa de Euclides da Cunha em Os Sertões traz nos costados um Brasil destroçado social e economicamente. Foi a nossa maior tragédia nacional. A linguagem excessivamente técnica, mormente nas descrições, polariza a obra: infestação de termos eruditos e científicos e as falas com sotaque nordestino. É uma terminologia de lascar.

Os Sertões é um livro com três capítulos: a Terra, o Homem e a Luta. O estilo jornalístico de “A Luta” é absolutamente ajustado porque é ágil. A linguagem de jornal permeia as narrações sobre os combates de Canudos. Diz-se que se trata de uma obra-prima, embora não haja ficção. “Foi tudo verdade?”, pergunta um aluno que bate as teclas com este simpatizante do Antônio Conselheiro.

A guerra é brutal; a linguagem, um portento; o meio ambiente, desolador. Trata-se de uma obra essencial para entender melhor as contradições de nossa nação. Republicanos e monarquistas se engalfinham em combates sangrentos. Bem, por mim, na falta de outros critérios, escolheria este livro como o “fundador” do português usado no Brasil.

Há vários outros fatores para fundar uma língua nacional. Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro; e pelo menos mais de uma dezena de outros candidatos. Tudo por causa de nossa policromia étnico-cultural. Pela grandeza territorial da nossa terra, creio que se poderia achar a língua formadora em regiões mais densamente povoadas por portugueses e seus descendentes. Nossa sociedade é plural. Gostaria de citar algumas obras que omiti sem que fosse meu desejo e que podem também ser indicadas. O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, e Macunaíma, de Mário de Andrade. Enfim, parece não haver a tão decantada obra-prima que englobe as “várias línguas” que percorrem as artérias ardentes deste nosso multifacetado país.

Seria uma insensatez esquecer uma obra que é a mais perfeita alegoria do Brasil já escrita. Trata-se do livro de Machado de Assis Esaú e Jacó – por sinal, o seu derradeiro romance. Para mim, essa obra é um candidato sério ao título já mencionado. Realmente, trata-se de uma obra essencialmente política. Ela nos mostra uma sociedade que perde o grande momento de se constituir em uma nação de fato. A história é assaz conhecida. Esaú e Jacó são personagens bíblicas e alegorias dos irmãos porque brigam desde o nascimento. Os gêmeos Pedro e Paulo encarnam a polarização social da época: Paulo é liberal e republicano. Ele deseja o progresso. Seu irmão, Pedro, é monarquista e conservador. Os dois se odeiam (assim como os vários Brasis que se confrontam). Um incluído; o outro excluído; os deputados Pedro e Paulo representam as forças dominantes dessa alegoria de Machado. Para piorar, os dois se apaixonam pela mesma mulher, Flora; ela morre, ao final, sem ter escolhido nenhum dos dois. Dai emerge uma pátria infecunda, estéril, que nasce morta.

Minha gente! É o Brasil que perde a grande chance de ser fraterno e justo. Machado era político? O leitor tem primazia para nos dar a resposta. Enquanto isso, os negros que lutam bravamente na Guerra do Paraguai começam a subir os morros (hoje favelas) porque o governo não cumpre o que lhes prometera: educação básica, um pedaço de terra e a liberdade. “E o Brasil?” Deve estar ouvindo na tevê os conselhos “geniais” do Conselheiro Aires: “Que continue o baile da Ilha Fiscal!” Machado só observa e toma notas.

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