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Qual cisne branco em noite de lua
Vai deslizando num lago azul
O meu navio também flutua
Nos verdes mares de norte a sul.

Linda galera que em noite apagada
Vai navegando num mar imenso
Nos traz saudades da terra amada
Da pátria minha em que tanto penso

Ao som desses açucarados versos do hino da Marinha, o autor de Noite de Almirante, Machado de Assis, e o mestre José de Alencar conversam aos cochichos, na plataforma de desembarque do cais do Rio de Janeiro. O mestre dos mestres pede a palavra a seu amigo, José de Alencar: “Sábio guru! É possível adivinhar quem está a desembarcar?”

“Parece que é um marujo sorridente que desova na plataforma do cais”, diz o romancista Alencar. Trata-se de Deolindo Venta-Grande, que volta de uma viagem de treinamento ao redor do mundo, sorridente e feliz. “E o que houve com ele?”, pergunta Alencar a Machado.

Está estupidamente apaixonado. Volta feliz para a sua paixão, a moça Genoveva. Antes de prosseguir, é bom citar o que os colegas marujos (que sabem da paixão jurada do protagonista Deolindo Venta-Grande por Genoveva) lhe dizem: a mocinha é esperta e sabe o que quer. Antes de partir, Deolindo deixou a namorada em uma casa a uma quadra do cais. Depois de descer, sai em busca dessa habitação, onde não encontra ninguém. Caro leitor, não esqueça que ambos estão cercados por uma auréola de paixonite aguda.

Você já prometeu amar alguém para sempre? Jurar felicidade infinita ao companheiro? Deolindo recorre à vizinha Inácia para que ela lhe indique o destino de Genoveva. O bairro para onde ela foi chama-se Gamboa, a umas quadras de onde moraram antes do embarque. Inácia lhe diz que, pouco depois de ele partir, apareceu um vendedor de roupa: o saudoso e querido José Diogo, um mascate. É com ele que Genoveva parte para viver sua nova paixão.

Para a Gamboa ruma o desnorteado Deolindo, que sente na testa comichão em dois pontos. Dali hão de emergir os devidos chifres. Esta é fatalidade que atinge os personagens: ao constituir o triângulo amoroso, está pronto o cenário para os devidos efeitos. Isso só dá rolo. Deolindo encontrou-a debruçada e tranquilona sobre a varanda de uma casa.

O bruxo do Cosme Velho conhece mais que ninguém as idas e vindas e mistérios dessa nossa frágil alma

O amante e a antiga amante saúdam-se enquanto o coração de Deolindo vira um pote de pregos. Traído, queria recuperá-la. Acho que ela não vai deixá-lo entrar, diz o autor. Alencar concorda e acrescenta ao drama outro vaso de veneno emocional. Os desejos mais ardentes pululam na cabeça em brasa do protagonista, que quer porque quer entrar na casa da infiel namorada. Será que o deixa entrar? O mascate José Diogo está em viagem.

Nesse momento, Deolindo diz pros seus botões que ela iria deixá-lo entrar. Enquanto jogam conversa fora, a esperta morena Genoveva vai judiando do homem que ela traiu também por amor. Assim é a alma humana: dúbia, versátil, lisa como um bagre ensaboado. Enfim! Ele vai se entregar. Será? Tenho cá as minhas dúvidas. Um monte de diabinhos atira pedras ao crânio do protagonista. O magoado marujo, em uma quase derradeira ambição, dá à moça morena e brejeira o par de brincos comprados na cidade de Trieste, na Itália. Moeda de troca? Talvez! Ir embora ou não? O autor sabe que as mulheres não se compram com brincos. Apenas uma paixão verdadeira pode superar o poder de aceitação da mulher amada. Enfim, resolve que está tudo perdido.

E Deolindo inicia a viagem de volta ao cais e à corveta. No caminho, vai atiçando o fogo que rodeia seu coração. A cabeça lhe estala. “Abandonado? Como? Eu fui tão bom com ela!”, murmura contrariado. O cais está perto. Antes, os amigos brincaram com ele, porque havia uma mulher apaixonada à sua espera. Até você, leitor amigo, diria, nessa hora, o que realmente aconteceu. Os colegas marujos da corveta estão loucos para saber como foi a “noite de almirante”. Por que as pessoas são curiosas em relação à desgraça alheia?, pergunta Machado. Os dramas humanos são coléricos ou não, com chifres ou sem, são a essência da felicidade ou infelicidade das pessoas. Uma revoada de marujos se despeja sobre o infeliz Deolindo. Como foi a noite? Estará contente o nosso companheiro? Genoveva ficou com os brincos e jogou na mão dele e em seu coração uma bola de cera derretida. A grande questão que Machado e Alencar discutem é se Deolindo dirá a verdade aos amigos: que a noite foi um fracasso.

Antes de descer do clímax, pergunto: o que você, leitor esperto, faria? O que fará o triângulo amoroso tornar-se um ângulo agudo? A palidez do dia se acentua. Depois de muito pensar, já chegando ao cais, o desventurado Deolindo resolve... resolve mentir! Só quem nunca leu as artimanhas psicológicas de Machado se surpreende. Está tudo acabado.

Fica patente que o bruxo do Cosme Velho conhece mais que ninguém as idas e vindas e mistérios dessa nossa frágil alma, que se contorce como uma larva jogada num braseiro. Sim, leitor amigo, infelizmente a vida é assim mesmo. Não se pode jurar amor eterno e nem colocar Nosso Senhor Jesus Cristo numa sinuca de bico. A alma humana nunca deixará a sua imprevisibilidade.

Alguém pondera que os personagens de seus romances românticos são mais previsíveis. Ao ler um romance de José de Alencar, de antemão sabemos como a história terminará. Com as obras realistas (nas quais Machado deita e rola) as soluções do destino são insondáveis. Caramba! Esquecemos o Venta-Grande! Bem, depois de mentir aos amigos, vai tomar uma cerveja com os colegas, até um pouco satisfeito porque mentiu. Você, leitor, este narrador, o acompanhante, mestre Alencar sabemos que o que aconteceu era absolutamente inevitável (leitor, não fique aí coçando a testa) porque a coisa pega. Esse gran finale já era esperado. Nestes casos, o melhor é juntar os cacos da vaidade e “dar às de vila-diogo” – para usar uma expressão portuguesa que significa “ir embora” – com o rabo entre as pernas, ou entre os chifres. A escolha é sua. Resta pensarmos um pouco sobre nossa fragilidade psíquica e emocional. Nossos desejos ora miram uma saborosa aventura sensual, ora perdem-se em devaneios. Genoveva, também uma personagem redonda, deve estar agora a brincar com os brincos de Trieste. Alencar, este que vos fala e o grande autor da narrativa paramos uma caleça (um tipo de carruagem de meados do século 19). Antes de os cavalos partirem, ainda uma indagação ao destino: “Por que não te calas?” Sumindo ao éter, ouvem-se versos do hino da Marinha:

Minha galera
Também vai cortando os mares
Os verdes mares
Os mares verdes do Brasil

Happy end? Em verdade, mais um final infeliz. É da vida.

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