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Nunca ninguém tinha visto nada igual. Estamos no sertão do Ceará, onde se desenrola uma dramática aventura. Há 40 dias o céu não deposita no solo crestado uma mísera gota de água. Foi tão terrível a seca que ganhou o nome do ano em que ela ocorreu: 1915. Trata-se de uma obra que veio para ficar. Há milhares de animais mortos. Os sertanejos povoam todas as estradas e caminhos em fuga. É gente simples “amaldiçoada”. É possível encarar este tema sob a sombra dos ramos do umbuzeiro, que preserva a “santa água” nos nódulos das raízes. É uma tristeza, uma desolação; cruzes para todo lado. O Demo anda enfurecido com a falta de devoção a ele. O céu deixa pingar gotas de cor azul. É o manto celeste que cobre essa desgraceira toda. Os santos e anjos de alguns cemitérios bateram em retirada. É preciso alguém que relate a trágica convulsão dos elementos. Eis a candidata! “Estou aqui! Vamos viajar por Quixadá?”

A autora, Rachel de Queiroz, reflete a trágica relação dela com a maldição do Sertão. No plano real, a escritora é obrigada pelos pais a fugir com eles da inclemência do clima e se mudar para o Rio. A obra é composta por duas partes distintas. Uma trata da trágica vida contada por Chico Bento, o vaqueiro e a família. A outra estará umbilicalmente atrelada à relação sentimental de Vicente, proprietário truculento que lida com gado, e Conceição, intelectual competente. Pudera! Ela é professora. É respeitada por causa de seu hábito de ler livros com viés feminista e socialista. Sua avó, a conservadora Mãe Inácia, leva um susto porque nunca haveria de concordar com essa postura ideológica de esquerda.

Conceição passa as férias na fazenda dos ancestrais. É quando tenta conquistar o primo Vicente. O sertanejo era muito rude, até selvagem com a vaquejada. Quando a seca se refugia nas ravinas, leitos secos de rios e cacimbas cobertas por teias de aranhas e fuligem do abandono, surgem os picumãs. Quando a seca (não chove há mais de quatro anos) envolve o sertão e se infiltra nas almas, todos tomam a mesma decisão: abandonar tudo e ir para a cidade. Vicente cuidará de tudo, lutando contra tudo e contra todos. É preciso manter a criação de pé, viva, e resistir até não haver mais forças.

Rachel de Queiroz se volta para o drama, não do ambiente, mas das pessoas que trilham eternamente o “solo do inferno”

Conceição lida no campo e vê a fuga das aves de arribação em um local denominado “campo de concentração”; ali ficam alojados os que fogem da seca. Sem que se esperasse, Conceição é informada de que o primo se juntara a uma caipira daquelas que já nascem derreadas e com um único dente, que o vulgo chama de ”picotador”. Para consolar Conceição, apenas a sensibilidade da Mãe Inácia lhe dá conforto emocional. Ela afirma que homem é bicho ruim, mas que já foi pior. Por onde andam os homens, escorre sangue na ponta da peixeira.

Vicente e Conceição se encontram. Ela começa a lidar com ele de outra maneira, mas o homem fica ressentido e sem entender nada. Uma irmã de Vicente organiza um namoro faiscante com ele e uma colega, Mariinha Garcia. Ele refuta o namoro, explica que quer apenas ser gentil e nunca lhe passou pela cabeça comprometer-se. Dá-se conta de que Conceição não tem nenhuma chance de diálogo. Nisto, a Seca se despede, dá adeus e todos retornam para o Logradouro.

No segundo plano, não há como fazer apologia de tudo que se desenrolará de maneira cruel e que envolve a fuga de Chico Bento, da mulher e dos cinco filhos. Eles representam os retirantes. Obrigam-no a abandonar a fazenda. Chico agrega algumas economias, compra alimentos e arranja uma jumenta para cruzar o sertão inclemente. Estão pensando em arribar para o norte e tentar a sorte com a borracha. A esta altura, ocorre um fato por demais trágico. Josias, o filho mais novo, resolve fazer besteira da grossa: come mandioca verde e, depois de longo sofrimento, morre envenenado.

O solo seco do sertão fica coalhado por uma imensa “plantação” de cruzes toscas como a de Josias. É de judiar o coração. Um fato maximamente marcante ocorre quando o peão mata uma cabrita que não era dele. Foi maltratado e acusado de matador de cabras. Taxado de ladrão, arrastou os restos do caprino e levou o que sobrou para casa; carregou as tripas para comer. Mais adiante, Chico Bento percebe que seu filho mais velho se extravia. Todos acreditam que ele esteja em um lugar denominado Aracape. São categóricos: o filho de Chico Bento está por ali. Aparece o delegado do local onde, afirma-se, o filho de Bento busca proteção. Dão-lhe alimentos, mas o filho desaparece. Tem um sonho poliédrico e todos ficam a par do sumiço. Na verdade, descobrem que o rapaz foge com comerciantes de cachaça.

Quando alcançam as bordas do campo de concentração, Conceição os identifica, arranja um emprego para Chico Bento e se amasia com um filho da terra. Surge-lhes uma dádiva: um bilhete de trem pra São Paulo; desistem, assim, de labutar com a borracha. Eu diria que

Rachel se detém mais nos dramas individuais da seca, enquanto Graciliano Ramos procura e acha as relações malsinadas entre todos esses condimentos sociais e políticos. O Quinze trata do impacto estarrecedor sobre a natureza humana aviltada; Vidas Secas faz uma leitura ideológica, com implicações sociais e morais. Valeria ainda classificar a obra como socialmente engajada. No fundo, ambos os livros foram forjados no âmago de um açude seco, fugaz e mágico. Seguindo a narrativa de tão perto, penso na alegria com que os lixeiros da natureza, os urubus, se banqueteiam e saciam.

O Quinze encerra uma metonímia interessante. O numeral contém uma dubiedade semântica e sintática: A semântica é cruel, pois essa palavra (1915) também pode remeter à substantivação por meio do artigo masculino: “O Quinze”. Torna-se, assim, a tragédia mais triste e devastadora do Agreste do Ceará.

As vidas dos vários personagens estão presas às influências telúricas do ambiente que caracterizam o seco e gretado solo nordestino. A narrativa de Rachel de Queiroz é mais impactante; a escritora se volta para o drama, não do ambiente, mas das pessoas que trilham eternamente o solo que se pode chamar “solo do inferno”. “Esta terra chega a derreter”, comentam. A obra emplaca pelo fato ser a primeira de Rachel. O que admira é que a autora tenha tamanha visão do sertão – e com apenas 20 anos. A Seca, de certa forma, é extraordinária porque pode produzir obras desse quilate.

Qual é o personagem principal de O Quinze? A morte, pois ela ronda todos os seres viventes. Há os que não entenderam o drama entre o clima hostil e a precariedade das forças do homem. Enfim, continuamos sem saber “por quem os sertanejos se dobram” – essa frase não soa familiar?

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