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O enigma da esfinge é grego e foi resolvido por Édipo, que percebeu que as quatro, duas e três patas da charada são as fases da vida de homem, que engatinha, caminha e claudica com bengala no ocaso da senilidade. Ainda assim, a imagem que a mente associa ao medo de ser devorado é a da gigante esfinge egípcia em Gizé. Diga-se, essa confusão revela a profunda imbricação entre as culturas mediterrâneas da Anti­­guidade. Esses mitos, as figuras híbridas de animais e humanos, são atrações em pacotes de turismo vendidos com aura de aventura à Indiana Jones e guiados com tédio pelos operadores de turismo que recebem os novos ricos que tagarelam em português mundo afora. Se o passado do Egito está decifrado, prêt-à-consommer por aventureiros de final de semana, o futuro é enigmático e decodificá-lo exige mais que a Pedra da Roseta.

A história do Egito é parte da nossa pela via judaica (Moisés), helênica (Alexandria), romana (Marco Antonio e Cleópatra) e cristã ao dar asilo a Jesus Menino em fuga do infanticídio promovido por Herodes. Por mais de 600 anos o norte da África foi palco da formação do cristianismo. Dali veio Santo Agostinho, o teórico que moldou a Igreja Católica Romana. Outros ramos cristãos tinham Alexandria como centro teológico, a exemplo dos coptas. A ocupação árabe na virada do século 7 para o 8 trouxe a religião islâmica, hoje majoritária, e o desaparecimento da diversidade cultural e linguística então existente. A arabenização da região e, particularmente do Egito, é evento recente, coisa de 15 séculos, mas foi intensa e total, cortando os liames com as civilizações que floresceram na antiguidade, construindo pirâmides colossais, desenvolvendo geometria, medicina, técnicas sofisticadas de mumificação e irrigação.

Os monumentos históricos são itens de encenações findas; o script da peça em cartaz não deve ser interpretado a partir do cenário; a compreensão dos acontecimentos recentes deve ter em consideração a pobreza, a economia dependente de ajuda externa, ingressos do pedágio no Canal de Suez, renda do turismo, a inflação, corrupção e a insensibilidade política do grupo de Hosni Mubarak que pretendia fazer (em eleições fraudulentas) seu filho como sucessor. A monarquia seria menos ofensiva porque, ao menos, não haveria fraude à vontade popular. A rigor, os egípcios de todas as classes sociais chegaram ao ponto de in­­dignação ao serem tratados como otários na hora de votar. O levante popular que derrubou a tirania na Tunísia foi o estopim do barril de pólvora egípcio, cheio até a tampa.

Vale lembrar que a Líbia, tiranizada por Kadafi, está entre a Tunísia e o Egito. Será questão de tempo para a derrocada do rei do Botox? Encerrando a digressão, voltando às margens do Nilo, se vê que o medo ocidental pode ser resumido à ascensão de fundamentalismo religioso ao poder estatal. Política e religião juntas, qualquer seja o credo, matam a liberdade, a democracia e a paz internacional. Vide Israel e Irã, repúblicas teocráticas que são fonte de tensão permanente nas relações internas e externas. O Estado laico não é o paraíso na Terra, mas tem a vantagem de liberar cada indivíduo para viver o seu paraíso particular. Augura-se que os egípcios encontrem a fórmula para superar a ditadura personificada por Mubarak e não cair na ditadura espiritual da teocracia.

Faz 60 anos que o Egito estabeleceu marcos importantes na luta contra o colonialismo europeu ao se livrar do jugo britânico. É verdade que se enredou em governos despóticos sucessivos – Nasser, Sadat, Mubarak; contudo, a mobilização popular em curso pode ser a pedra fundamental da democracia em sua forma universal, isto é, não ocidental ou oriental: governos que duram tempo breve, definido, e mudança não violenta de pessoas e grupos no poder.

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