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Em tempos de mulheres pernaltas, com ar de ga­­zela na savana, a imagem da capibixaba Dora Vivacqua pode parecer meio démodé, coisa de octogenário de passado extenso e futuro breve. Não, a memória não está sendo movida por libido senil – uma contradição somática; o móbil é a sensação de que lembrar de Luz del Fuego é passear pelas fontes das grandes mudanças culturais da sociedade brasileira nos últimos cinquenta anos. Movimen­­tos sociais exigem, por óbvio, grandes contingentes de pessoas aderindo a modos de se comportar em situações relacionais. Po­­rém essas grandes massas agem convencidas por poucas pessoas que geram as ideias e são capazes de persuadir as demais.Circunstâncias históricas ainda não explicadas propiciam o surgimento de pessoas talentosas vivendo próximas no espaço e tempo e cada uma delas, a partir dos estímulos do ambiente cultural, vai gerando inovações que vão acelerando o processo. Assim foi com o norte da Itália no Re­­nascimento – Dante, Ma­­quiavel, Leonardo, Rafael, Botticelli, Caravaggio, Michelan­­gelo, Do­­natello; depois, eclodiu o Ilu­­minismo, que foi o Renas­­cimento aplicado à arte da política. De súbito, em Paris, em tempos contíguos, Montesquieu, Rousseau, Diderot, Voltaire, Danton, Ba­­beauf, Marat, Robespierre, Sieyès, Napoleão. Entremeados pela Reforma Protestante, foram dois movimentos que desenharam o modus vivendi do Ocidente.

Reduzindo o foco da luneta caleidoscópica para olhar a cidade do Rio de Janeiro em 1950, se verão alguns geradores de ideias que são o substrato do modo de viver atualmente. Falo do Rio de Dom Pedro II a Carlos Lacerda, de Cartola a Tom Jobim, de Luz Del Fuego a Leila Diniz; não do Rio de hoje, um borrão do que já foi. Ali, num período de vinte anos, se aboliu o chapéu, a fatiota, o vozeirão para cantar, o cromo alemão para calçar, calçolas para ir ao mar. Jeans, camiseta, tênis, bossa nova, fio-dental; modos de vestir expressando pensamentos sobre a maneira de viver. Guar­­dadas as devidas proporções, foi uma revolução cultural.

A vedete das vedetes fez do Rio o laboratório das suas inovações e ali encontrou a conjunção de pessoas que moldam o futuro; artistas, intelectuais, loucos de todo gênero que reverberaram os arroubos de Luz Del Fuego e os amaciaram para alcançarem a condição de modismos, de coisa prafrentex. Ela, a dançarina do povo, insistia no nu como manifesto político e, marginal dos mar­­ginais, transitava nas bordas da vanguarda. Sagaz, fundou o Partido Naturista Nacional, cuja plataforma política era o deboche de incitar a nudez em tempos pudicos. Se não houve vitória eleitoral no continente Brasil, migrou para uma ilha e fundou a república peladíssima, onde astros de Hollywood foram barrados porque não se despiram. Vegetariana, das carnes preferia o prazer. Vítima de ladrões violentos, foi para as franjas da história onde o esquecimento é a morte.

Continuamos vestidos; paletós e gravatas ardem sob o sol tropical, denotando a assimetria lógica entre moda e clima; ditadura de costumes que as experimentações vanguardistas de Luz Del Fuego não venceram. Hoje a nudez não tem apelo político; cam­­pos e praias de naturismo são excentricidades para poucos. Contudo, os muitos passos que a distanciaram dos hábitos vigentes abriram a trilha para que as multidões dessem alguns passos para viver sem tensões a relação das mulheres com o próprio corpo. Luz Del Fuego não é a mulher brasileira, mas está presente, ainda que remotamente, no modo brasileiro de pensar a feminilidade.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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