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Os livros do ginásio falavam dos bandeirantes e suas histórias mirabolantes, léguas vastidão adentro. Abrindo caminhos, embrenharam-se à cata de riquezas, escravizando silvícolas, garimpando ouro, esmeralda, diamantes. Mobilizados pela cobiça, dilataram a América portuguesa sobre terras bravias que desbastaram e, por ações de coragem quase insana, foram do esquecimento da morte se libertando.

Assim, com a melodia camoniana servindo de trilha sonora, extasiei-me ao pisar o calçamento de pedras irregulares de Vila Boa de Goiás. A beleza antiga do casario tricentenário, eiras e beiras, portais, arcos, janelões de madeira pesada, vestíbulos comunicando o público e o privado, a rua e o lar. Tapetes de hidráulico, com desenhos únicos, puídos pelos milhares de pisadas dos pés que portaram as vidas que transitaram ali.

O dedinho de prosa na loja de artesanato, no cômodo que antanho fora a alcova, revela que sete gerações da mesma família habitaram aquela casa. Tudo era sólido e sólido permaneceu. Sequer os fantasmas desmancharam no ar e, no silêncio da noite alta, vagam pelas vielas. Aquietado numa soleira, fecho os olhos ao presente e deixo o passado passar na imaginação em cenas enevoadas que somem ao estalo da música urbana, com motos querendo atenção.

O frescor da aurora convida a caminhar sobre as pedras orvalhadas, escorregadias. Lá embaixo, no rio que trouxe os paulistas, convivem em margens opostas a Cruz de Anhanguera, da primeira missa nos idos de 1700, e a casa de Cora Coralina. Doçura e rudeza conectadas pela solidão erma. Difícil decidir qual dos desbravadores é mais fantástico: Cora, isolada de qualquer escola, tendência, eclodiu em talento puro as suavidades da alma; Anhanguera desenhou o mapa do próprio destino e abriu o coração do Brasil à lusofonia que Cora modelou em versos.

Turistas entram e saem dos bares, lojinhas, fotografam em profusão. As caminhadas lentas facilitam a interação e pessoas que nunca conversariam se estivessem presas em automóveis proseiam como velhos amigos. Sentadas na praça, admiram a luz poente que faz a Serra Dourada iluminar o céu com cores que não existem nas paletas da arte. Bucólico, o dia se arrasta sob sol tão intenso que a luz dá a sensação de peso sobre as costas. A sombra perfumada da copaíba reúne os preguiçosos da tarde que esperam ansiosos a chegada da noite.

A procissão do fogaréu é assunto. Quase todos se esqueceram do catecismo, mas aos poucos se lembram de que, enquanto ocorria a Santa Ceia, houve a ordem de prisão de Jesus e 40 soldados o caçaram até a captura no Jardim das Oliveiras. Capuzes cônicos, túnicas, tochas, tambores. Meia-noite, os farricocos descalços caminham lépidos. A multidão esbaforida corre para acompanhar o ritmo. A força cênica impressiona até os céticos.

Findas as encenações pascoalinas, a cidade volta ao sono dos séculos. À luz bruxuleante, me perco na bruma noturna. O único transeunte me informa a direção. Ao agradecer, ouço: "Bartolomeu Bueno da Silva, a seu dispor". Sinto calafrios, não olho para trás e penso que mais um pouco encontrarei o Chico Mineiro no sertão de Goiás!

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