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Um dia vou acordar achando que ainda moro na República da Rua Humaitá. E vou achar que a minha dor de cabeça não é um derrame ou coisa parecida, mas apenas um noitada no Araucana Café Bar na noite anterior.

Um dia vou acordar procurando uma aspirina na caixa de sapatos do Beto, que é o esconderijo dos remédios. De cueca e meias, com a aspirina numa das mãos, vou até a cozinha para tomar um copo d’água e inspecionar o que ainda sobrou na geladeira. No caminho de volta para meu colchão – pois não tenho cama, durmo em um colchão –, vou parar diante da vitrola e sucumbir à irresistível tentação de ouvir o terceiro movimento da Sonata em Lá Maior de César Franck.

O Turco está dormindo com a namorada no sofá da sala, diante da tevê ligada sem programação (há muito tempo Yoko Ono já recitou a letra de Imagine depois da Sessão Coruja). Na parede há um quadro das Moranguinhos que nunca entendi por que está lá. Sim, eu sei que é uma ironia pós-moderna, mas quem diabos arrumou essa joça?

Olho para as paredes enegrecidas da igreja e penso que um dia o Templo de Jerusalém também ficou assim

Lá fora o dia já começou, como avisam os motores da Transportes Coletivos Grande Londrina e o alarme da fábrica que jamais soubemos onde fica. Me dá vontade de ir até a padaria da Sônia para comer uma coxinha e tomar um guaraná caçulinha, mas não tenho dinheiro, fui assaltado perto do RU ontem à noite, na saída de uma calourada, onde passei depois de fugir do Clube da Esquina, fugindo de uma garota que não quero mais ver, e procurando uma garota que quero ver muito.

Vou até os fundos da casa, abro a porta do quintal onde cresce um baita pé de milho plantado pela Dona Santina. Observo a majestade da planta e me lembro de Rubem Braga. Meu pecado está sempre diante de mim.

Eis que aparece à minha frente um senhor de 97 anos, procurando por sua mulher, que imagino ter morrido há muito tempo. Ele ouve os compassos finais da Sonata de Franck e pergunta de onde vem essa música tão bonita. Minha mulher também toca piano, diz ele. Ela não veio aqui? Eu não sei o que responder, ele sorri e diz que pode esperar, afinal já esperou tanto tempo.

Atrás do velho, há uma igreja destruída por um incêndio. Olho para as paredes enegrecidas, para as vigas caídas, para a cena desoladora – e penso que um dia o Templo de Jerusalém também ficou assim, porque os judeus resistiram até o fim às tropas de Tito.

Volto-me para falar de novo com o velho, mas ele desapareceu sem a menor explicação. E a música também não toca mais. É quando eu me lembro de fazer uma oração. Fecho os olhos e encontro a Mãe e o Filho em um local incerto e não sabido do universo.

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