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Nos últimos tempos procuro fazer da minha vida uma longa e ininterrupta oração. É algo que já tentava, sem saber, desde que era ateu e lia as sentenças intermináveis de Em Busca do Tempo Perdido. Agora, os cânticos gregorianos e ambrosianos têm sido a minha inspiração. E Bach, sempre ele.

Rezar sem fim é uma difícil tarefa. Quando a menciono, as pessoas geralmente reagem de duas formas: ou não acreditam, ou acham que estou ficando louco. Nem uma coisa, nem outra. Aos que não acreditam respondo que se trata apenas de uma tentativa, não de uma consecução. Aos que me consideram fanático, digo que além da oração não existe um estado de espírito mais compatível com a serenidade, a lucidez e o equilíbrio. Não é por acaso que a unidade básica do discurso humano tem o mesmo nome. Somos todos seres orantes, aceitemos isso ou não. Fé e tempo são os únicos elementos que diferenciam as orações da gramática e do espírito.

Quero rezar o tempo todo, do nascer ao pôr do sol, e à noite também rezar minhas estranhas liturgias de sonho. Com o exemplo dos monges, estou aprendendo a orar enquanto trabalho, ou melhor: a fazer do trabalho em si uma forma de oração.

Doravante vou lutar para que todas as circunstâncias de minha vida correspondam a um sacramento. Cada chuva, batismo. Cada conversa, confissão. Cada aperto de mão, crisma. Cada bom-dia, matrimônio. Cada compromisso, ordem. Cada despedida, unção dos enfermos.

Desde os meus tempos de ateísmo, eu orava enquanto pensava; mas agora rezo sabendo que rezo. Tomo um café: em oração. Saúdo o vendedor de alho: em oração. Entro no ônibus: em oração.

As pequenas dores e angústias de cada dia são chances de rezar. Gostaria de me acomodar no fundo de uma lembrança ou de um arrependimento, como se eles fossem uma casa de infância, e aí rezar até encontrar um novo sentido e um novo idioma para as mesmas palavras. Na prece vejo meu pai e minha mãe. Na prece elimino as lacunas de tempo e espaço. Na prece morro e volto a viver.Quero rezar como um mendigo que acaba de ouvir a confissão do papa; rezar A Divina Comédia, seguindo Virgílio e Beatriz; rezar ouvindo as obras completas de João Sebastião Bach.

Li em algum lugar que todas as peças compostas por Bach dão seis dias de música ininterrupta. Seis dias de oração para seis dias da Criação. Já que estamos no Gênesis, penso que o pecado original – essa ferida na alma do homem – é talvez a presunção de rezar sem Deus. Tende piedade de mim, Senhor. Transformai-me em oração.

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