• Carregando...

Quando estou com febre, sinto que a morte sempre está muito próxima; nós é que não percebemos. Tal como uma irmã siamesa invisível, ela pode a qualquer momento assumir o comando de tudo aquilo que somos. Assim que eu chegava de viagem, meu pai me chamava para passear no cemitério. O hábito pode parecer mórbido, mas na verdade era um acontecimento agradável, divertido, suave e feliz. O pai dizia: "Vamos pegar um cemitério?" Eu respondia de bate-pronto: "Só se for agora".

Conversávamos sobre vivos e mortos; ele contava histórias e piadas de Mirandópolis; eu olhava as datas de nascimento e morte nas lápides e calculava mentalmente o tempo de vida das pessoas. Alguns morriam muito novos; outros muito velhos; certos casais, com pouquíssimos dias de diferença. Eu queria tanto passear de novo com meu pai no cemitério.

Ganhei um Mini Cantor no Natal de 1977. Quando estou com febre, sempre recordo aquela noite. Passamos o Natal na casa do Vô Briguet e da Vó Maria. O Mini Cantor me parecia um presente luxuoso e complexo. Na verdade, era apenas uma pequena caixa acústica ligada a um microfone. Estou vendo o objeto na minha frente agora: o tampo da caixa tinha cor alaranjada, com bordas pretas, e o microfone era branco e preto, feito de plástico; não havia pedestal. Mesmo sem pedestal, imitávamos Roberto Carlos. "Como vai você? / Eu só preciso saber / da sua vida..." Estavam todos lá: a mãe, o pai, a Vó Maria, o Vô Briguet... Pareciam todos vivos, indestrutíveis, eternos. E eram.

Se olho o termômetro e o mercúrio avança além dos 38 graus, é certo que irei pensar na hipótese de algum grave acontecimento ter lugar naquele instante. E se houvesse agora uma revolução socialista, um golpe de Estado, um atentado terrorista, um cataclismo, uma catástrofe humanitária, a morte de um amigo muito querido? Rezo um Pai-Nosso para que nada disso aconteça. Rezo uma Ave-Maria porque sou um miserável pecador. Rezo pensando na força de cada uma das palavras repetidas por milhões de pessoas nos últimos 2 mil anos.

Sinto vontade de ir à missa quando estou com febre. Não por ser carola, mas porque acredito que o mundo é salvo no momento em que o padre consagra as espécies do pão e do vinho. O mundo estava sendo salvo em algum lugar do planeta quando eu passeava com meu pai no cemitério, quando ganhei o Mini Cantor, quando as Torres Gêmeas foram atingidas. O mundo estava sendo salvo quando eu tive febre; quando, por um instante, antes que o mercúrio baixasse, eu pensei que iria finalmente abraçar meu pai e beijar minha mãe...

Dê sua opinião

O que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]