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Não é balela a máxima de que o setor de cultura é o primeiro a padecer em tempos de crise financeira. Os números estão aí, assinando embaixo. Matéria recém-publicada pela Folha de S.Paulo mostrou que museus e bibliotecas pontificam o ranking do arrocho financeiro que grassa o setor criativo. Pior. Os cortes de orçamento cultural atingem as três esferas, com a agravante (embora pouca gente considere esse fato) de que o setor público municipal é o que mais destina dinheiro às artes e afins. Pode não ser o que melhor investe, mas com certeza é o que tem responsabilidade direta pelo acender e o apagar das luzes.

Em São Paulo, iniciaram sua via crúcis de 2015 a Pinacoteca do Estado, o Museu Afro Brasil e o Paço das Artes, para citar alguns. No Rio de Janeiro, a goteira pinga – e não é de hoje – sobre a magnífica Biblioteca Nacional e na sempre a perigo Casa de Rui Barbosa. Esses lugares guardam acervos sem os quais não se conta a história do Brasil. E, além da falta de dinheiro em caixa, padecem com quireras dos fios de luz e canos avariados. É uma tragédia de base. Foi sempre assim, dizem muitos, mas se agrava quando o cinto aperta e o cobertor fica curto em outros setores.

A pilhagem da cultura é tão antiga quanto esse imenso país. Pela lógica, as “joias da coroa” deveriam ser protegidas e guarnecidas nas horas em que eclode uma guerra. São essenciais. Mas não é o que acontece. A cultura, vista como penduricalho, tende a ser tratada como supérflua. Esse mal é crônico, difícil de sarar. Resta-nos lamber as feridas, mas sem perder de vista que algo deve ser feito a toque de caixa pelos que acreditam que, sem a cultura, todo o resto vai mal.

Algumas perdas culturais são irreparáveis, e para essas não cabe o conformismo. É o caso do patrimônio arquitetônico. É, sem dúvida, o maior perdedor em tempo de recessão, pois para esses não há segunda chance. Inicia-se o “bota abaixo” em nome do desenvolvimento, da empregabilidade, da emergência, dos direitos patrimoniais privados. É o que temos visto na capital paranaense nos últimos cinco anos, quando não foram economizados nem imóveis listados como unidades de interesse de preservação.

Algumas perdas culturais são irreparáveis, e para essas não cabe o conformismo. É o caso do patrimônio arquitetônico

Falham a sociedade organizada, o poder público, mas também tropeça o cidadão comum, que aceita – e naturaliza – os atentados à memória urbana. A maior parte das demolições, consentidas ou não, acontece sem que a população esboce reprovação, ou o faça de forma descompassada. Talvez não haja mesmo um descontentamento notável, dadas certas crenças sobre a falta de limites para a propriedade privada.

A questão, contudo, não é assim tão simples. Se não basta o argumento de que as novas gerações têm direito ao passado do país e da cidade onde nasceram, resta lembrar que o turismo – parte da poderosa indústria do entretenimento – se nutre das sociedades que souberam se preservar. Nem só de shoppings espelhados vive o mercado de viagens. Quem não salva patrimônio perde dinheiro e todos os demais ganhos da vida cosmopolita.

O caso do conjunto fabril do bairro Rebouças, em Curitiba, merece entrar nesse rol de preocupações. O moinho em que funciona a Fundação Cultural, na Rua Piquiri com a Engenheiros Rebouças, está garantido, mas o mesmo não se pode dizer de seu entorno. O Matte Leão beijou o chão há quatro anos. As lamentações sobre os muros só vieram quando não havia mais tempo. As ameaças às outras fábricas são constantes. O projeto SoHo Rebouças, da prefeitura, desandou.

Antigas áreas industriais são fonte garantida de oxigenação urbana nas cidades inteligentes. Grandes barracões povoados de memória se tornam centro de tudo o que faz de uma cidade merecedora desse conceito. Resta saber se vamos querer nos alistar entre essas urbes bem-aventuradas ou se vamos preferir ficar entre as imediatistas e predadoras, doidas por falsos brilhantes. É verdade que muitas cidades preservadas tendem à espetacularização, o que as torna muito mais uma caricatura do que um exemplo de respeito à história. De qualquer modo, essa discussão não prescinde de paredes e janelas em pé.

Um projeto de lei municipal de patrimônio chegou à Câmara em janeiro. Espera-se que seja votado, mas também discutido, e rápido, antes que a mão pesada das urgências econômicas justifique mais danos à arquitetura e à memória. Sem investimentos, ruem. Especialistas não tardam em dizer que o segredo da preservação – vide o que acontece em Minas Gerais – passa pela sensibilização contínua da comunidade, de modo que signifique sempre sua paisagem cultural. Curitiba não tem mais folga para errar, ainda mais depois de ter sido, um dia, apontada como um modelo de políticas de preservação. Pode pesar sobre ela o crime de retrocesso, um desmentido a tudo que galgou até aqui.

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