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Entidades querem proibir estados, municípios e União de vedarem a promoção da ideologia de gênero em escolas.
Entidades querem proibir estados, municípios e União de vedarem a promoção da ideologia de gênero em escolas.| Foto: Pixabay

Os ditos “progressistas” conhecem bem o caminho das pedras: sempre que não conseguem aprovar suas plataformas no Poder Legislativo, correm para outro canto da Praça dos Três Poderes, onde têm encontrado um Supremo Tribunal Federal frequentemente disposto a atender seus pleitos, muitas vezes colocando seu “papel iluminista” (nas palavras de Luís Roberto Barroso) à frente da própria defesa da letra e do espírito da Constituição. A bola da vez é a ideologia de gênero nas escolas: seus defensores acabaram de protocolar, no STF, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 600, com o objetivo de derrubar um artigo da Lei Orgânica 55, da cidade paranaense de Londrina, aprovada em 2018. O texto, de autoria do então vereador e hoje deputado federal Filipe Barros (PSL), proíbe o ensino da ideologia de gênero, bem como atividades relacionadas ao tema, nas escolas de ensino fundamental da rede pública do município.

No texto da ADPF 600 não poderia faltar, obviamente, o vocabulário apocalíptico usado pelos impetrantes – no caso, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e pela Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais (Anajudh LGBTI). Eles falam em “censura”, “totalitarismo” e “institucionalização da irracionalidade” enquanto preveem o recrudescimento da discriminação e da “exclusão” de inúmeras crianças e adolescentes que se tornariam “invisíveis”, como se a vedação da ideologia de gênero nos currículos escolares representasse incitação ao preconceito. Nada mais enganoso, já que continua a ser função da escola – entre tantas outras – fomentar, em conjunto com as famílias, “a noção de respeito ao outro, criando uma necessária cultura de paz” e combater a discriminação contra qualquer ser humano, por que motivo for, o que inclui, obviamente, a defesa da dignidade das mulheres, dos homossexuais e transexuais.

Se o STF se curvar à “pedagogia lacradora”, estará agindo como poder totalitário, cassando a voz da população dos municípios

O alarmismo, aqui, é mero cavalo de Troia, pois o que propõem os defensores da ideologia de gênero tem pouco a ver com o salutar combate ao preconceito. Trata-se, pura e simplesmente, da negação da biologia, consagrando a noção de que o “gênero” é algo completamente dissociado do sexo biológico e que, por isso, pode ser “socialmente construído”, levando ao extremo de justificar a violação, neste processo de “construção”, da própria identidade fornecida pela genética. Uma tese tão carente de fundamentação científica que chega a ser inacreditável que ela tenha sido endossada sem o menor questionamento pelo ministro Celso de Mello, no recente julgamento sobre a criminalização da homofobia, em voto que foi seguido pela maioria dos demais ministros da corte.

Para além da argumentação puramente ideológica, os proponentes da ADPF 600 recorrem também ao texto constitucional. Como o artigo 22, XXIV da Carta Magna afirma que “compete privativamente à União legislar sobre (...) diretrizes e bases da educação nacional”, a lei londrinense estaria usurpando prerrogativas do governo federal. No entanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei 9.394/96), que regulamenta este trecho da Constituição, afirma, em seu artigo 9.º, IV, que a competência de “estabelecer (...) competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” é da União, mas “em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios” (grifo nosso). Ou seja, não se trata de competência exclusiva da União, o que significaria uma hipercentralização indevida, mas de prerrogativa exercida de forma compartilhada.

E aqui é preciso deixar claro que a lei londrinense não se propõe a substituir a LDB, nem a suprimir conteúdos que estejam previstos em diretrizes nacionais como a própria LDB ou a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O artigo da Lei Orgânica 55 que o STF analisará é uma norma específica que suplementa as normas gerais que emanam da União, prática permitida pela Constituição em seu artigo 30, inciso II: “Compete aos municípios (...) suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”; e também pela LDB, ao afirmar, em seu artigo 11, III, que “os municípios incumbir-se-ão de (...) baixar normas complementares para o seu sistema de ensino”. Na Lei Orgânica 55, não há afronta direta às leis de alcance nacional, mas sim uma determinação a respeito de tema sobre o qual a legislação nacional nada afirma, dentro da autonomia que a Constituição e a LDB garantem a estados e municípios.

Leia também: Itamaraty, STF e a ideologia de gênero (editorial de 5 de julho de 2019)

Leia também: Ignorar a biologia não a torna menos real (artigo de Walter Williams, publicado em 9 de fevereiro de 2019)

O caso londrinense não é inédito: há pelo menos outras nove ações de cunho semelhante no STF, com duas decisões provisórias que suspenderam leis similares em Paranaguá (PR) e Palmas (TO) – em ambos os casos, as cautelares vieram da pena de Barroso, que também foi sorteado como relator da ADPF 600. Os defensores da ideologia de gênero aguardam ansiosamente que a ação prospere, pois assim não poderão ser legalmente impedidos de semear na mente de crianças e adolescentes a confusão sobre a própria identidade, com consequências graves, atestadas por entidades como o American College of Pediatricians. Mas, se o STF se curvar à “pedagogia lacradora”, estará agindo como poder totalitário, cassando a voz da população dos municípios, exercida por seus representantes eleitos em temas nos quais a Constituição, a legislação infraconstitucional e até tratados internacionais lhes garantem esse direito. É o caso, por exemplo, do artigo 12,4 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que garante às famílias o “direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções” (grifo nosso).

Não faz sentido que os cidadãos de um município não possam decidir que não querem em suas escolas determinados conteúdos que, lembremos, nada têm de triviais. Não estamos falando de conteúdos clássicos do currículo escolar previstos em lei nacional, mas de uma tentativa de imposição ideológica sobre os alunos de concepções morais que muitas vezes destoam completamente das convicções de suas famílias, e que já foram rejeitadas por Legislativos país afora graças à pressão popular, em processos perfeitamente democráticos.

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