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| Foto: Delil Souleiman/AFP

O presidente norte-americano, Donald Trump, foi ao Twitter cantar vitória sobre o Estado Islâmico em 19 de dezembro. “Era minha única razão para estarmos lá durante meu mandato”, afirmou na mídia social, e por isso era hora de os cerca de 2 mil norte-americanos que estão na Síria voltarem para casa, e rapidamente. De acordo com autoridades do Departamento de Defesa, Trump queria todos de volta em até 30 dias. Oficialmente, a Casa Branca não forneceu um cronograma para a retirada das tropas. Uma decisão repentina que afeta a luta contra o terrorismo, quebra alianças de longa data e altera significativamente o balanço de forças no Oriente Médio.

Trump venceu a eleição de 2016 prometendo que os Estados Unidos não seriam mais a “polícia do mundo” – plataforma que muitas pessoas de esquerda, em todo o mundo, não hesitariam em endossar – e não lutariam as guerras dos outros, o que pareceria justificar a retirada da Síria. Esse discurso isolacionista, no entanto, tem o sério problema de ignorar as ocasiões em que a cooperação internacional é necessária na manutenção da ordem global, e a influência que os Estados Unidos podem exercer nessa tarefa. Além disso, a guerra contra o Estado Islâmico não é uma intromissão nos assuntos de outro país. O terrorismo islâmico tem alcance global, e recentemente o EI tem sido o principal veículo para espalhar o terror no Ocidente. Ao lado do necessário trabalho de inteligência para evitar novos atentados, combater os militantes em seu berço era tarefa que precisava ser cumprida, tanto que a coalizão criada para combater os extremistas conta com nada menos que 74 países, unidos pelo mesmo objetivo. Poucas ações militares no passado recente reuniram tantas nações.

O Estado Islâmico surgiu e cresceu no vácuo deixado pela saída norte-americana do Iraque , algo que pode se repetir agora

Mas a ameaça do Estado Islâmico está mesmo eliminada? O grupo está realmente muito enfraquecido – mantém apenas 5% do território que dominou no auge de sua expansão territorial, e informações dos serviços de inteligência estimam que tenham sobrado apenas 2,5 mil combatentes do EI na região fronteiriça entre a Síria e o Iraque. Mas, assim como a suspensão de um tratamento médico antes de a doença estar eliminada permite que o mal volte com mais força, a retirada súbita e unilateral dos Estados Unidos antes da aniquilação total do EI abre brechas para seu ressurgimento. Isso porque a maior parte do esforço de combate propriamente dito contra o EI é feita pelos grupos curdos, para os quais o apoio americano é fundamental. Sem o principal aliado, os curdos ficam bastante enfraquecidos – um prato cheio não apenas para o EI, mas também para o autocrata turco Recep Tayyip Erdogan, adversário de longa data da minoria curda.

Os curdos não são os únicos traídos pelo arroubo de Trump. Todos os demais aliados na coalizão internacional também foram deixados na mão, e alguns deles fizeram questão de se opor publicamente à medida. Ministros de Relações Exteriores ou ligados às forças armadas de França, Alemanha e Reino Unido, por exemplo, foram unânimes em afirmar que a ameaça do Estado Islâmico não havia sido eliminada por completo e que ainda havia muito trabalho a ser feito. Está evidente que não houve consulta aos parceiros militares dos Estados Unidos, repetido o padrão de ausência de diálogo que se tornou tradicional na gestão Trump.

Leia também: Trump e o ataque à Síria (editorial de 8 de abril de 2017)

Leia também: Eu escolho os curdos (artigo de John McCain, publicado em 26 de outubro de 2017)

Internamente, a decisão levou à demissão do secretário de Defesa, James Mattis, e atraiu críticas de parlamentares do Partido Republicano. O senador Lindsey Graham, aliado do presidente, chamou a retirada de “um grande erro, digno de Obama” – foi durante os mandatos do antecessor de Trump que tropas americanas deixaram definitivamente o Afeganistão e o Iraque. Neste último caso, o processo foi iniciado por George W. Bush, mas Obama seguiu em frente com a retirada apesar de estar evidente que o Iraque ainda não estava suficientemente estabilizado. Foi justamente no vácuo deixado pela saída norte-americana que o Estado Islâmico surgiu e cresceu, algo que pode se repetir agora.

Rússia e Síria, evidentemente, comemoraram a saída norte-americana. Durante toda a operação militar contra o EI, os Estados Unidos adotaram a postura de não interferir na guerra civil que destruiu o país, agindo apenas em pouquíssimos episódios, como o bombardeio a bases sírias após um ataque com armas químicas promovido pelas forças do ditador Bashar Assad. A partir de agora, até mesmo essa possibilidade se torna remota. Sem esse elemento de dissuasão, Assad fica livre para continuar atacando os rebeldes sírios como bem entender, com apoio russo, agravando ainda mais o que já é uma das grandes crises humanitárias da atualidade e provando que a retirada súbita e unilateral norte-americana é um erro com consequências que vão além do combate ao extremismo islâmico.

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