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| Foto: Evaristo Sá/AFP

O presidente Michel Temer resolveu negar todo o seu discurso de responsabilidade fiscal ao armar algumas bombas para seu sucessor, de acordo com entrevista dada ao jornal O Estado de S.Paulo. Além de anunciar que não tentará mais adiar o reajuste dos servidores do Poder Executivo, o que custará quase R$ 7 bilhões a mais ao contribuinte brasileiro já em 2019, Temer ainda disse que está praticamente acertada a concessão do aumento de 16,38% pedido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – aquele mesmo que, anteriormente, Temer não parecia disposto a endossar, de acordo com colaboradores próximos.

O aumento de salário dos ministros do STF – e, consequentemente, do teto constitucional – tem um impacto fiscal menor (mas não muito menor) que o reajuste do funcionalismo do Executivo, mas traz embutida uma imoralidade que o torna especialmente grave: agora, até mesmo o presidente da República admite que o que está em jogo não é nem mesmo a tal reposição das perdas decorrentes da inflação, mas a incorporação ao salário de um privilégio que viola a Constituição: o auxílio-moradia dos juízes.

Certos setores do Judiciário estão insensíveis e descolados da realidade do país

Hoje, todos os magistrados recebem um adicional de R$ 4,3 mil a título de auxílio-moradia, ainda que morem em imóvel próprio na cidade onde trabalham. Uma violação clara dos artigos 37 e 39 da Constituição, já que esse pagamento, da maneira indiscriminada como é feito, não tem o caráter indenizatório – seria diferente (e aceitável) se o juiz, transferido para localidade diferente daquela onde tem imóvel, recebesse apenas o ressarcimento de seus gastos com aluguel ou hotel, mediante apresentação de comprovante de despesa. Mas o privilégio se mantém desde o fim de 2014 graças a uma liminar do ministro Luiz Fux, que tem feito o possível e o impossível para evitar, com sucesso, um julgamento em plenário de uma ação sobre o pagamento.

E foi exatamente com Fux, além do futuro presidente do STF, Dias Toffoli, que Temer se reuniu, para ouvir dos dois magistrados que o orçamento do Judiciário podia comportar o reajuste de 16,38%, já que o pagamento do auxílio-moradia já estava previsto nas contas. Como a diferença entre o salário atual e o reajustado corresponde aproximadamente ao valor do auxílio-moradia, estaríamos diante do clássico “elas por elas”. Temer disse ao Estadão que faltam apenas algumas formalidades para consagrar o arranjo em projeto de lei que, segundo ele, deve passar tranquilamente pelo Congresso, até porque um aumento do teto constitucional também abre a porteira para os parlamentares se concederem aumentos semelhantes. Mas, como manda a prudência das serpentes, a votação deve ficar para depois das eleições, para não comprometer as chances de nenhum parlamentar.

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Em resumo, o aumento não passará de uma manobra para legalizar uma ilegalidade. Concede-se o reajuste, com seu efeito-cascata sobre toda a magistratura e aqueles servidores que recebem acima do teto constitucional, e extingue-se o auxílio-moradia nos moldes atuais – e, com ele, toda a controvérsia. As ações no Supremo perderão a razão de ser, e em pouco tempo ninguém mais lembrará do privilégio, quanto mais de pedir algum ressarcimento aos cofres públicos de valores indevidamente pagos.

Toda a controvérsia sobre o auxílio-moradia serviu para a sociedade brasileira perceber o quanto certos setores do Judiciário estão insensíveis e descolados da realidade do país, concentrados que estavam nos próprios privilégios em um país onde a maioria da população não recebe de salário o que os juízes recebiam de auxílio. Pois essa ala está perto de conseguir a vitória definitiva, com a ajuda irresponsável de um governo que começou falando em ajuste fiscal, e termina de forma deprimente, endossando o corporativismo e o patrimonialismo.

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