Na campanha presidencial de 2022, o mesmo Lula para quem “todo mundo [deveria] ter direito e não ter vergonha” de fazer um aborto também fugia da responsabilidade (e da possível perda de votos) ao afirmar que “isso [decidir sobre o aborto] não é o papel do presidente da República. É papel do Legislativo”. Era mentira, evidentemente: o Poder Executivo tinha e tem seus meios de fomentar o aborto mesmo sem mudanças na legislação e Lula sabia disso – tanto que foi em seu primeiro mandato que o Ministério da Saúde publicou a norma técnica que dispensava a apresentação de boletim de ocorrência para mulheres que buscavam abortos na rede pública afirmando terem sido estupradas. No início de 2024, o mesmo ministério publicou normativa (de vida curtíssima, felizmente) defendendo o aborto mesmo em casos de bebês que já haviam alcançado a viabilidade fetal. Agora, foi a vez de um conselho ligado ao Ministério dos Direitos Humanos tentar uma ação sorrateira, temporariamente frustrada.
Sem alarde algum, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) elaborou uma resolução sobre o atendimento a crianças e adolescentes que engravidassem em consequência de uma violência sexual – o que incluiria todos os casos envolvendo meninas de até 14 anos, já que até essa idade qualquer relação sexual, mesmo consentida, é tratada pela lei como estupro, e consequentemente o aborto nestes casos não é punido pelo Código Penal. Ao contrário do que o Conanda costuma fazer, desta vez o texto da resolução não foi submetido a consulta pública: foi simplesmente entregue aos conselheiros – divididos quase meio a meio entre representantes do governo e integrantes de entidades da sociedade civil organizada – em meados de outubro, para ser votado no início de novembro. A minuta era subscrita pela atual presidente do Conanda, Marina de Pol Poniwas, uma das representantes da sociedade civil.
Todo o procedimento descrito na resolução do Conanda foi desenhado para praticamente empurrar a criança ou adolescente na direção do aborto, em vez de dar-lhe as condições de fazer uma escolha consciente
O segredo, que o Conanda justificava afirmando que não se tratava de uma “minuta consolidada”, tinha uma outra razão de ser, bem mais plausível. Todo o procedimento descrito foi desenhado para praticamente empurrar a criança ou adolescente na direção do aborto, em vez de dar-lhe as condições de fazer uma escolha consciente, fornecendo-lhe informação equilibrada sobre as duas alternativas: o aborto ou a manutenção da gravidez até a viabilidade fetal, com antecipação do parto e entrega da criança para adoção. Fica evidente, ainda, a obsessão do atual governo com a eliminação de bebês que já ultrapassaram a barreira das 22 semanas de gestação, tendo assim chances de sobreviver fora do útero, com benefício para a criança, que ganha uma chance de viver; e para a mãe, pois a antecipação do parto é um procedimento que traz menos riscos à gestante que a realização do aborto, que consiste em matar o feto no ventre da mãe e depois forçar sua expulsão.
Estes podem ser os maiores, mas não são os únicos absurdos da resolução, que ainda pretendia ignorar os pais ou responsáveis da criança ou adolescente abusada ao afirmar que o aborto poderia ser feito sem o consentimento e até mesmo sem o conhecimento deles. Procedimentos médicos muito mais corriqueiros, quando realizados em menores, dependem da autorização dos pais; por que, então, permitir (ou incentivar) que se esconda deles uma intervenção que traz consigo sérios riscos de saúde, mesmo quando feito em condições sanitárias impecáveis, e que ainda por cima termina necessariamente com a morte de um ser humano? Estaria o Conanda igualando o ato de matar um filho a algo prosaico como extrair um dente?
Também não passou despercebida a restrição que o Conanda pretendia impor ao direito, constitucionalmente garantido, à objeção de consciência. Médicos que se negassem a realizar abortos poderiam até mesmo estar sujeitos ao braço estatal. “A recusa indevida em cumprir uma obrigação legal com base em convicções morais, políticas, religiosas e crenças pessoais deve ser denunciada aos conselhos de fiscalização profissional, aos conselhos de direitos e ao Ministério Público, por representar violação dos deveres ético-profissionais e dos direitos de crianças e adolescentes, em particular de seu direito à saúde”, diz o texto, sem detalhar o que seria uma “recusa indevida”, o que na prática abriria espaço para a perseguição aberta a médicos pró-vida. Além disso, a resolução diz que objeção de consciência é “direito individual que não pode ser alegado por instituições que prestam serviços de saúde”, o que deixaria instituições de saúde com um ethos pró-vida (seja por filiação religiosa, seja por qualquer outro motivo) em uma situação delicadíssima. Não deixa de ser curioso, aliás, que estes trechos constem de um capítulo sobre “enfrentamento a violações de direitos contra a criança e o (a) adolescente”, mostrando como os autores do texto encaram a objeção de consciência: não como direito, mas como obstáculo.
Apesar de o Conanda não ter nenhum tipo de poder legislativo, a resolução ganharia força normativa caso fosse aprovada, tornando-se regra a ser seguida por serviços de saúde e instituições que atendem crianças vítimas de abuso. No entanto, a revelação do teor da resolução disparou um enorme movimento de rejeição por entidades da sociedade civil e, ao contrário do que estava previsto, o texto não entrou na pauta da reunião mensal do conselho realizada nos dias 6 e 7. A Gazeta do Povo apurou que a pressão pelo adiamento veio principalmente dos conselheiros ligados ao Poder Executivo – não porque sejam pessoas comprometidas com a defesa da vida desde a concepção (do contrário provavelmente nem teriam sido indicadas para integrar o Conanda), mas pelo temor de desgaste do governo em caso de aprovação, em um sinal de que ao menos isso o Planalto aprendeu com o caso da nota técnica abortista de fevereiro.
A Gazeta apurou que há uma nova versão da resolução circulando entre conselheiros, com algumas mudanças, mas que ninguém se iluda: trata-se de mera retirada estratégica. A sociedade agora sabe que o governo quer usar o Conanda para avançar a agenda abortista, e precisa manter vigilância firme para que os absurdos não se repitam. Ainda melhor será uma participação mais efetiva dos brasileiros neste e em outros conselhos, para que eles reflitam melhor as convicções da população, e não as de uma minoria ideologicamente ativa. O prazo para entidades da sociedade civil se inscreverem nas eleições para integrar o Conanda está aberto; se a estratégia bem-sucedida usada nas eleições para os Conselhos Tutelares for repetida, o Conanda poderá se tornar uma entidade realmente dedicada à proteção dos adolescentes e das crianças – todas elas, incluindo as que ainda não nasceram, mas que já têm o maior de todos os direitos, o direito à vida.
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