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Plenário da Câmara durante a sessão que aprovou o projeto de lei do abuso da autoridade.
Plenário da Câmara durante a sessão que aprovou o projeto de lei do abuso da autoridade.| Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

No mesmo dia em que os deputados federais aprovaram a MP da Liberdade Econômica, os parlamentares resolveram amarrar juízes, membros do Ministério Público, policiais e vários outros agentes públicos ao aprovar, sem nenhuma discussão, um nefasto projeto de lei sobre abuso de autoridade que já havia passado pelo Senado em 2017. Nefasto não porque seja desnecessário coibir abusos, que existem e precisam ser combatidos, mas porque o texto aprovado deixa inúmeras brechas abertas para a retaliação de réus e investigados contra os que os investigam, acusam e condenam.

O simples fato de os deputados terem se escondido, recorrendo à votação simbólica em vez da votação nominal, já demonstra as intenções nada republicanas daqueles que gostariam de ver o texto aprovado. A única pista que o cidadão e eleitor pode ter são os nomes dos que aprovaram o requerimento para que o PL 7.596/17 tramitasse em regime de urgência, dispensando a análise nas comissões da Câmara. Esquerda, Centrão e até partidos mais à direita irmanaram-se no apoio à votação-relâmpago do projeto. Louvem-se algumas exceções: o PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, até liberou a bancada, mas seus deputados votaram maciçamente contra a urgência (41 a 4); ampla maioria das bancadas do Patriota e do Cidadania também votou “não”; e o Novo foi o único partido a orientar formalmente a bancada, além de ter apresentado requerimentos (todos derrotados, infelizmente) pedindo votação nominal e análise artigo a artigo do projeto, para tentar dar alguma transparência ao processo.

O texto aprovado pela Câmara não é a lei que a sociedade brasileira esperava; é apenas a resposta da bancada da impunidade à Lava Jato

O texto votado, apesar de vir com o nome do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), era obra dos também senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Roberto Requião (MDB-PR, que não se reelegeu em 2018). Havia dois projetos na casa: o 280/16, de Calheiros, altamente revanchista e arbitrário, e o 85/17, de Rodrigues, sensato e construído em conjunto com o Ministério Público. Eles passaram a tramitar juntos, e o relator Requião manteve o número do projeto “bom”, o de Rodrigues, mas colocou nele, basicamente, o texto de Calheiros, jogando fora o trabalho do senador da Rede. As versões iniciais eram tão absurdas que instituíam até mesmo o “crime de hermenêutica”, dando margem a processos contra juízes que tivessem suas decisões revertidas em instâncias superiores. Requião resistiu, mas acabou polindo as versões seguintes. O projeto aprovado pelo Senado e remetido à Câmara não incluía o “crime de hermenêutica”, mas manteve uma série de expressões deliberadamente vagas.

O truque adotado tanto no Senado quanto na Câmara, onde o relator foi o deputado Ricardo Barros (PP-PR), foi misturar condutas que realmente configuram abuso de autoridade – como manter na mesma cela presos de ambos os sexos, ou impedir o contato entre o preso e seu advogado – com outras definições que dão margem à interpretação. O que é, por exemplo, uma condução coercitiva “manifestamente descabida”? Como saber se uma investigação está sendo “injustificadamente” estendida? Mesmo uma situação real e condenável, que ocorre quando um magistrado pede vista de um processo e demora a devolvê-lo, se torna crime de abuso de autoridade quando o juiz se demorar “demasiada e injustificadamente”, sem que o projeto defina exatamente o que isso signifique.

Além disso, o texto que os deputados aprovaram define (corretamente) o crime de abuso de autoridade como de ação penal pública – ou seja, quem tem de oferecer a denúncia é o Ministério Público. No entanto, o projeto admite a ação penal privada se o MP não agir dentro de um determinado prazo. Isso significa que um condenado, réu ou investigado poderá processar policiais, juízes, membros do MP e outras autoridades. Seria a legalização da represália contra agentes da lei.

Muitos deputados defenderam o PL 7.596/17 como uma alternativa melhor que o outro projeto sobre o mesmo tema que tramita no Congresso – aquele que resultou da destruição das Dez Medidas Contra a Corrupção, e que inclui aberrações como uma mordaça contra membros do MP, impedidos de exercer plenamente seu direito à liberdade de expressão. Mesmo assim, o texto aprovado pela Câmara nesta quarta-feira não é a lei de abuso de autoridade que a sociedade brasileira esperava; é apenas a resposta dada pela bancada da impunidade aos avanços que operações como a Lava Jato trouxeram para o país.

O presidente Jair Bolsonaro tem 15 dias para sancionar o texto, e o ministro Sergio Moro já recomendou o veto de alguns trechos problemáticos, mesma demanda feita pelo PSL. De fato, uma tesoura bem criteriosa pode retirar as piores partes do projeto, devolvendo-as ao Congresso; Bolsonaro não pode ter receio de usá-la.

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