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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, apresenta a juíza do 7.º Circuito dos Estados Unidos, Amy Coney Barrett, como nomeada para a Suprema Corte no Rose Garden da Casa Branca, em 26 de setembro de 2020.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, apresenta a juíza do 7.º Circuito dos Estados Unidos, Amy Coney Barrett, como nomeada para a Suprema Corte no Rose Garden da Casa Branca, em 26 de setembro de 2020.| Foto: Chip Somodevilla/Getty Images/AFP

O presidente norte-americano, Donald Trump, cumpriu a promessa de indicar rapidamente uma mulher para suceder Ruth Bader Ginsburg na Suprema Corte dos Estados Unidos, e escolheu Amy Coney Barrett, juíza do Tribunal de Apelações do 7.º Circuito (os Circuitos são o equivalente às regiões dos Tribunais Regionais Federais no Brasil). A aprovação do nome de Barrett pelo Senado será uma batalha em que os democratas tentarão convencer os republicanos a seguir o precedente que os próprios republicanos estabeleceram em 2016, quando a maioria de oposição no Senado barrou um juiz indicado à Suprema Corte pelo democrata Barack Obama, alegando que aquele era seu último ano de mandato e que a indicação deveria ser feita por quem vencesse a eleição e assumisse a Casa Branca em 2017.

Não é nosso objetivo, aqui, discutir qual a melhor saída para este impasse, mas analisar outro aspecto que salta aos olhos desde que Barrett foi escolhida por Trump. Seu perfil já lhe rendeu diversos adjetivos na imprensa, especialmente “ultraconservadora” – o prefixo não é usado com a mesma frequência quando se trata de autênticos extremistas do outro lado do espectro ideológico. Além disso, afirma-se abertamente que Barrett não pode ser uma boa justice (como são chamados os membros da Suprema Corte) por ser católica convicta, o que a levaria a julgar de acordo com sua fé – um argumento que certamente seria classificado como preconceituoso em muitas outras situações, mas que aparentemente ganha passe livre quando aplicado a cristãos. Assim ocorreu, por exemplo, quando o geneticista Francis Collins, evangélico, foi convidado por Obama para chefiar os National Institutes of Health em 2009. Collins foi desqualificado por cientistas e ateus militantes devido à sua religião, ignorando seu impressionante currículo, que incluía a chefia do Projeto Genoma Humano. A atuação de Collins na agência governamental, no entanto, calou os críticos, e o geneticista está na linha de frente das iniciativas de combate à Covid-19 nos Estados Unidos.

Desqualificar para a vida pública quem leva sua religião a sério é, no fim, desqualificar toda uma parte relevante da população, especialmente em países como os Estados Unidos e o Brasil. Trata-se de postura que, além de preconceituosa e excludente, demonstra agressividade e profunda ignorância histórica, ao esquecer de uma série de grandes personalidades de fé arraigada e que realizaram feitos notáveis nos mais diversos campos, inclusive o político – não raro motivadas justamente pela fé que tinham. De onde, então, surge tamanha hostilidade?

Os ditos “progressistas” combatem a nomeação de uma juíza apontando o risco de que ela coloque as próprias convicções acima da lei, mas aplaudem quando o mesmo comportamento é adotado por magistrados que compartilham de sua ideologia

O laicista radical que gostaria de manter pessoas religiosas longe de cargos públicos parte do pressuposto de que tais pessoas, uma vez investidas de poder, tentarão “impor suas convicções religiosas a todos os demais, independentemente de sua religião”, afirmação quase sempre acompanhada do raciocínio segundo o qual “se determinada religião manda ou proíbe fazer algo, que isso valha para seus seguidores, e que eles não tentem impor a mesma regra a todos os demais”. Mas o que preocupa o laicista não é tanto a possibilidade de a pessoa de fé usar seu cargo para a defesa de um dogma ou a imposição de um preceito religioso. O que realmente incomoda laicistas, “progressistas” e engenheiros sociais são certas posturas em temas como a defesa da vida, a noção de casamento e família, determinados comportamentos, políticas identitárias. Esses, no entanto, não são assuntos que podemos chamar de “religiosos”. São questões éticas ou morais, às vezes até mesmo biológicas e antropológicas, e que dizem respeito a todo ser humano, tenha ou não religião. O fato de igrejas e confissões religiosas às vezes assumirem o protagonismo no debate público sobre tais temas não faz deles “temas religiosos”.

Os “progressistas”, aliás, não se incomodariam com a participação de religiosos na vida pública se os dois grupos estivessem de acordo sobre tais temas – basta ver como partidos de esquerda brasileiros nunca deixam de lançar líderes religiosos como candidatos. O problema, no fundo, não é a presença per se de pessoas de fé na arena pública, mas apenas a dos religiosos dos quais se discorda. Trata-se uma aliança conveniente entre “progressismo” e laicismo para calar as vozes contrárias.

Um dos grandes teóricos contemporâneos da filosofia política, John Rawls – referência, aliás, para muitos “progressistas” –, não vê problema algum na participação de pessoas e instituições religiosas no debate público, defendendo as opiniões que bem desejarem, desde que saibam expressar suas convicções em termos que possam ser compartilhados por aqueles que não têm a mesma fé. Não basta, portanto, pleitear algo porque está nos livros sagrados de determinada confissão ou porque o líder religioso assim o disse; é preciso apelar a princípios que todas as pessoas sejam capazes de compreender, como, por exemplo, a igual dignidade de todos os seres humanos. Foi este o caminho trilhado por um dos exemplos favoritos de Rawls, o pastor e ativista pelos direitos civis Martin Luther King. Ainda que ele empregasse termos religiosos – e não apenas quando falava nas igrejas –, a base de seu discurso era racional e compreensível por qualquer um. Por fim, no caso de um político, as convicções que defende, caso sejam parte importante de sua plataforma, serão submetidas, primeiro, ao crivo dos eleitores; e, depois, encontrarão eco ou resistência no parlamento, onde a lei é construída.

No caso de juízes, no entanto, há uma questão adicional a considerar. Ainda que um magistrado seja capaz de articular da maneira mais racional, mais universalmente compreensível, suas convicções pessoais a respeito de determinado tema, influenciado ou não por sua fé, ele pode simplesmente julgar de acordo com elas? Esta pergunta coloca em uma situação ainda mais constrangedora aqueles que se opõem à indicação de Barrett com base em sua fé. Pois, como lembrou GianCarlo Canaparo em artigo traduzido e publicado pela Gazeta do Povo, eles não apenas são incapazes de citar um único voto da juíza que tenha sido baseado em suas convicções religiosas; eles ainda precisam lidar com o fato de que a escolhida por Trump é uma defensora do chamado “originalismo”, que defende a interpretação da Constituição de acordo com o que está no texto e o que reflete a intenção original do legislador constituinte. E um originalista, portanto, não julga de acordo com suas convicções – independentemente de quais sejam elas, de direita ou esquerda, religiosas ou ateias. “Não acho que um juiz deva torcer a lei para alinhá-la ou para ajudá-la a corresponder de alguma forma às próprias convicções do juiz. (...) Todo mundo tem convicções, todo mundo tem crenças. Isso não é exclusivo para pessoas que têm fé”, afirmou Barrett em entrevista ao site Daily Signal, e há dezenas de outras declarações suas na mesma linha.

E eis a hipocrisia dos ditos “progressistas”, que combatem a nomeação de uma juíza apontando o risco de que, na Suprema Corte, ela coloque as próprias convicções acima da lei, mas aplaudem quando o mesmo comportamento é adotado por magistrados que compartilham de sua ideologia e que, por meio do ativismo judicial que reescreve a lei em vez de interpretá-la, fazem avançar sua plataforma em termos de moral e costumes. É o mesmo debate que se trava no Brasil de hoje, com algumas mudanças na terminologia – os defensores do ativismo judicial, por exemplo, preferem se enxergar como “iluministas”.

Independentemente do debate sobre votar ou não a nomeação ainda neste ano, é inquestionável que Amy Coney Barrett é, sim, uma ótima escolha para a Suprema Corte. Não por ser uma pessoa religiosa, mas pela visão que tem a respeito do papel de um juiz e por como essa visão a guiou em sua carreira na magistratura. A desconstrução que vem sendo feita por setores “progressistas” é resultado de um misto de preconceito – ao desqualificar alguém para um posto devido a sua fé – e hipocrisia, ao condenar um hipotético comportamento que eles mesmos aprovam quando é usado para fazer prevalecerem suas convicções.

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