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Carne, leite e ovos começaram a ser substituídos por alimentos como pasta de amendoim, pão vegano e carne de soja.
Carne, leite e ovos começaram a ser substituídos por alimentos como pasta de amendoim, pão vegano e carne de soja.| Foto: Marcos Morelli/SMCS

Quando representantes não eleitos pretendem fazer as vezes de formuladores de políticas públicas e usam o cargo que possuem para ver postas em prática as próprias ideias, a porta está aberta para autênticos abusos de autoridade, como o ocorrido em cidades baianas a partir de 2018. Um programa idealizado por uma promotora do Ministério Público da Bahia (MP-BA) implantou uma dieta vegana, ao arrepio de todas as diretrizes dos órgãos gestores da educação, em escolas de municípios paupérrimos do sertão – e a responsável pela ideia acaba de se livrar de responder por sua iniciativa diante do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Letícia Baird criou, em 2018, o programa Escola Sustentável, com o objetivo de eliminar completamente produtos de origem animal da merenda oferecida em escolas municipais – não apenas a carne, mas até mesmo ovos e leite. Em outras palavras, os estabelecimentos de ensino se tornariam veganos. Tudo em nome de uma proposta alimentar “mais ecológica”, como se o objetivo da merenda escolar fosse salvar o planeta, em vez de proporcionar à criança os nutrientes de que ela necessita para se desenvolver física e intelectualmente.

Não nos cabe, aqui, analisar os méritos nutricionais e morais de uma dieta vegana em comparação com outra que inclua produtos de origem animal; esta é discussão que cabe a nutricionistas, médicos e bioeticistas. Mas, no caso brasileiro, as regras do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) determinam a oferta de proteína animal ao menos quatro vezes por semana, o que por si só já coloca o Escola Sustentável em rota de colisão com as diretrizes do órgão a quem cabe regular aspectos como a oferta de merenda escolar. Depois que o caso se tornou público, o Conselho Regional de Nutricionistas da Bahia, o Conselho Federal de Nutricionistas e a Sociedade Brasileira de Pediatria também criticaram o programa, ressaltando a importância dos alimentos “proibidos” para o desenvolvimento infantil.

A promotora Leticia Baird impôs uma política pública, aproveitando-se da posição de membro do Ministério Público e utilizando instrumentos jurídicos que criavam obrigações falsamente baseadas em leituras enviesadas e recortadas da Constituição Federal

Nada disso, no entanto, interessou à promotora, que usou de sua posição de membro do Ministério Público para impor o programa a quatro municípios baianos, como afirmou ao jornal Washington Post a então diretora do Conselho de Alimentação Escolar de Serrinha, um dos municípios usados como “laboratório”. Especialmente sintomático do modus operandi da promotora foi o uso do instrumento do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para o estabelecimento do programa de alimentação vegana nos quatro municípios. O termo “ajustamento de conduta”, aqui, não se refere simplesmente a algo que já está bom, mas pode ser aperfeiçoado; no contexto da administração pública, só há necessidade de “ajustamento de conduta” quando há uma conduta patentemente errada ou irregular, e que precisa ser imediatamente interrompida e substituída pela prática correta. Mas a oferta de carne, leite e ovos na merenda escolar não é um erro ou irregularidade que exija “ajustamento” – pelo contrário: é o cumprimento estrito das diretrizes do FNDE. Em outras palavras, as autoridades que assinaram tais TACs, que ainda por cima previam multa e até “responsabilização civil, administrativa e criminal, inclusive, no âmbito da responsabilização por dano moral coletivo” estavam, implicitamente, admitindo que agiam contra a legislação ou as normativas governamentais ao oferecer proteína animal aos estudantes, o que evidentemente não é verdade.

Tais gestores certamente não assinaram os TACs por alguma autêntica convicção em favor do veganismo; muito provavelmente, falou mais alto o temor de alguma responsabilização, talvez até mesmo de um processo por improbidade administrativa. Afinal, o TAC assinado pelo município de Serrinha deixava subentendida a ideia de que oferecer carne às crianças seria desperdício de dinheiro do contribuinte – observe-se, por exemplo, um dos “considerandos”, que atrela o princípio constitucional da eficiência ao fato de o “custo financeiro” e “ambiental” da produção de carne ser “elevado, notadamente quanto ao consumo de água necessário, práticas de desmatamento, elevada emissão de gases de efeito estufa, além das inúmeras mortes de animais decorrentes”. E, para eliminar qualquer dúvida de que Leticia Baird age guiada por essa convicção equivocada, há as próprias palavras da promotora, que, procurada em 2019 pela Gazeta do Povo, afirmou que quem discordasse do cardápio vegano deveria comer carne “em casa com o seu dinheiro, pois aqui estamos falando de recurso público” – acrescentando à militância ideológica o acinte puro e simples, já que se trata de quatro cidades pobres, cujos IDHs estavam entre os mais baixos da Bahia.

Não se tratou, portanto, de um programa elaborado e apresentado aos gestores municipais como sugestão, que poderia ser adotada ou recusada livremente (desde que não violasse as determinações do FNDE), mas de verdadeira imposição de uma política pública, aproveitando-se da posição de membro do Ministério Público e utilizando instrumentos jurídicos que criavam obrigações falsamente baseadas em leituras enviesadas e recortadas da Constituição Federal. Em resumo, verdadeiro abuso de autoridade, previsto no artigo 33 da Lei 13.869/19, que criminaliza o ato de “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal” – como agravante, a imposição da dieta vegana não era apenas algo “sem expresso amparo legal”, mas sim uma violação explícita das normas do ente gestor da educação nacional. O CNMP, no entanto, fechou os olhos a tudo isso quando arquivou a investigação sobre a atuação de Leticia Baird, alegando que a implantação do programa “não se revestiu de qualquer indício de irregularidade ou de falta funcional que legitime a atuação do Conselho Nacional do Ministério Público”.

O mesmo CNMP que inventa “crimes de opinião” para punir ex-membros da Operação Lava Jato, cujo verdadeiro “crime” foi investigar políticos tão poderosos quanto corruptos, reunindo provas suficientes para que eles acabassem na cadeia, não vê problema algum quando uma promotora que milita na defesa dos animais resolve usar sua posição para transformar crianças pobres em cobaias ideológicas, privando-as de alimentos aos quais muito provavelmente elas só teriam acesso na escola. Uma grotesca inversão de valores que apenas incentiva outros membros do MP a extrapolar suas funções e impor as próprias preferências a gestores eleitos pelo povo.

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