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O terrorismo voltou a atacar a Europa na manhã de ontem, quando atiradores invadiram a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo, matando 12 pessoas, entre policiais e membros da equipe da revista. Entre os mortos estão o diretor da publicação, Stephane Charbonnier, conhecido como "Charb", e integrantes da nata do cartunismo francês, como Georges Wolinski, Jean Cabut ("Cabu") e Bernard Verlhac ("Tignous").

Até o momento do fechamento desta edição, os terroristas (ou pelo menos alguns deles) já teriam sido identificados, mas ainda não tinham sido capturados, o que impede a certeza absoluta sobre suas motivações, mas relatos de testemunhas indicam que o radicalismo islâmico estaria por trás do ataque. De fato, a Charlie Hebdo já estava na mira do extremismo muçulmano havia muitos anos. A revista, de esquerda e claramente antirreligiosa, vinha publicando charges críticas não apenas ao islamismo, mas a várias outras religiões, e foi alvo de ataques em outras ocasiões.

Quando o terrorismo volta a atingir o coração da Europa, é preciso refletir profundamente sobre as causas e as eventuais consequências do que ocorreu ontem em Paris. Ainda que, por hipótese, a Charlie Hebdo tenha, em algum momento, abusado do direito à liberdade de expressão – assunto que não cabe discutir neste momento –, a absurda e injustificável reação violenta contra os responsáveis pela revista é mais uma demonstração de que a intolerância está fincando raízes no mesmíssimo continente que legou ao mundo o conceito de tolerância, aprendido a duras penas depois de décadas de conflitos religiosos nos séculos 16 e 17.

Mais dramático ainda é perceber que pequenos grupos extremistas têm se aproveitado justamente deste conceito para serem aceitos nos países ocidentais, e só então revelar sua incapacidade de admitir diferenças de opinião ou de culto, estabelecendo "áreas reservadas" onde as liberdades democráticas já não se aplicam e é preciso seguir as regras específicas daquele grupo, ainda que conflitem com o ordenamento jurídico da nação onde ele está instalado. É um paradoxo com o qual o mundo ainda não aprendeu a lidar.

O risco que se apresenta agora é o de que a resposta europeia à intolerância seja mais intolerância, quer pela discriminação, quer pela derrota das liberdades individuais. No fim do ano passado, cerca de 30 mil pessoas foram às ruas em várias cidades alemãs, principalmente Dresden, para protestar contra o que consideram a "islamização do ocidente". A manifestação foi repudiada pelo governo alemão, por várias autoridades e por outras dezenas de milhares de pessoas, que organizaram contraprotestos por todo o país, mas ainda é difícil prever se o ataque de ontem pode mudar a percepção dos europeus sobre o delicado tema da relação com os muçulmanos que vivem no continente, especialmente aqueles que pressionam pelo direito de aplicar a sharia em suas comunidades. A discriminação também se manifesta no risco, que não é pequeno, de uma caça às bruxas nos moldes do pós-11 de Setembro, em que pessoas com nomes e feições árabes eram tratadas como suspeitas até prova em contrário.

Além da discriminação, existe um outro risco que afeta a todos, e não apenas os membros de um grupo étnico ou religioso: a tentação de extrapolar as necessárias medidas para coibir o terrorismo e acabar suprimindo outras liberdades em nome dessa luta. Afinal, é com o pretexto de "proteger a sociedade" que surgem, por exemplo, grandes esquemas de espionagem e monitoramento como o denunciado por Edward Snowden nos Estados Unidos. São atitudes que deixam evidente outro paradoxo. O terror é guiado pelo desrespeito aos direitos alheios – incluindo o mais fundamental deles, o direito à vida. Ora, se a resposta ao terrorismo levar uma sociedade inteira a viver sem as liberdades individuais, o próprio Estado terá consagrado os métodos daqueles que diz combater – em outras palavras, o terrorismo terá vencido.

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