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Bloqueio do Telegram: o que há de errado na decisão de Moraes
| Foto: José Cruz/Agência Brasil

Nesta sexta-feira (18), os brasileiros foram surpreendidos com a notícia sobre o bloqueio do aplicativo de mensagens Telegram, decretada monocraticamente pelo ministro Alexandre de Moraes. Trata-se de um ato com impacto significativo na vida de milhões de brasileiros, envolto num contexto de inegável animosidade política e há mesmo razões para o cidadão se indignar. No entanto, nem tudo nesse caso pode ser colocado naquela categoria da qual os brasileiros já estão fartos, a do ativismo judicial. Se por um lado a obsessão persecutória de Moraes contra o jornalista Allan dos Santos atinge um novo patamar, o aparente desprezo do Telegram pelo Judiciário brasileiro não podia mesmo ficar sem consequências, sob risco de nos rebaixarmos enquanto país soberano. Convém, portanto, entender melhor que parte dessa decisão é realmente equivocada, de modo a não acabar se indignando pelos motivos errados.

Uma pergunta contribui para percebermos as nuances da situação: a relevância dos serviços prestados por uma empresa estrangeira lhe confere o direito de desobedecer a determinações da Justiça brasileira? Se respondermos que sim, estamos admitindo que qualquer Big Tech, cujos produtos sejam amplamente usados por brasileiros, teria carta branca para fazer o que quisesse no país, independentemente do que digam as leis que todos nós seguimos.

Jogando um pouco mais de luz na questão, vamos supor que as cobranças feitas pelo STF ao Telegram fossem adequadas – embora saibamos que não são – e o aplicativo as ignorasse mesmo assim. A Justiça deveria aceitar o fato de que não há nada a fazer e deixar a empresa acusada sair ilesa, funcionando normalmente? Pensemos por um momento que o fato gerador da decisão não fossem as opiniões de um blogueiro, mas sim o uso sistemático da ferramenta para compartilhamento de pornografia infantil ou o aliciamento de menores para o tráfico de drogas. Dificilmente alguém estaria defendendo o Telegram nesse momento.

O problema, portanto, não está no bloqueio de um aplicativo de mensagens que desobedece a determinações do STF. Se há sanções previstas para tal descumprimento, elas precisam mesmo ser aplicadas, embora sempre caiba o prudente questionamento de haver ou não outra forma menos drástica de se fazer uma sentença ser cumprida. Convém não perder de vista o princípio da proporcionalidade, especialmente quando se trata de um programa que está em 53% de todos os smartphones registrados no país, usado em múltiplas atividades econômicas e até para causas muito nobres, como a comunicação com brasileiros que estão na Ucrânia, em meio à guerra.

O que há de realmente reprovável na decisão são as determinações que o STF fez ao Telegram, pois se originam de um inquérito completamente absurdo, com erros formais e uma visão equivocada da liberdade de expressão, falhas graves que já analisamos nesse espaço em outras ocasiões.

Em resumo, trata-se do inquérito aberto de forma genérica e sem objeto definido em março de 2019, pelo próprio STF, a mando do ministro Dias Toffoli. Desde então, a peça vem sendo criticada por instituições, juristas e procuradores de todo o país. O inquérito foi instaurado sem que ninguém fosse formalmente acusado, em um foro inadequado para julgar os casos, já que os ministros figuravam como supostas vítimas das fake news. As investigações também foram iniciadas sem provocação do Ministério Público Federal e ou de autoridade policial, estendendo-se até agora, sem prazo definido para acabar. Ainda por cima, corre em segredo de Justiça, de modo que os alvos das operações não têm acesso à totalidade das acusações pelas quais estão sendo investigados.

O que há de realmente reprovável na decisão são as determinações que o STF fez ao Telegram, pois se originam de um inquérito completamente absurdo, com erros formais e uma visão equivocada da liberdade de expressão

Allan dos Santos é um dos investigados daquele inquérito e seu nome aparece novamente nessa nova polêmica, dessa vez para fundamentar a decisão que pune o Telegram. Em fevereiro, o ministro ordenou o bloqueio de três dos seus canais no aplicativo, com suspensão das contas por 24 horas. A plataforma não teria cumprido integralmente a decisão, já que, apesar de ter bloqueado os canais, não repassou informações privadas sobre os seus criadores e administradores para a Corte.

É preciso ressaltar que a decisão não cita apenas o caso do jornalista como justificativa, pois o ministro menciona depoimentos de policiais que acusam o Telegram de ignorar repetidamente as autoridades brasileiras quando estas solicitam o fornecimento de informações sobre outros investigados, acusados de crimes graves, mas faz isso de forma muito genérica. O foco é realmente dado à figura do jornalista. Um exagero que salta aos olhos.

Na decisão, contudo, há sinais de que não seria apenas a resistência do Telegram em atender as demandas do STF o que incomoda Moraes, mas sim o uso em si do aplicativo por tantos brasileiros. Pode-se deduzir isso da imposição de multas pesadas sobre todo e qualquer cidadão que usar artifícios tecnológicos para burlar a determinação e acessar o Telegram. Não existe qualquer dispositivo na legislação brasileira que fundamente esse tipo de sanção e o ministro nem sequer parece interessado em procurá-lo, visto que não se encontra justificada no texto. Numa canetada, Moraes definiu que é ilícito usar o chamado VPN para acessar o aplicativo e os brasileiros que arquem com as consequências caso decidam fazê-lo.

Aqui convém explicitar que essa medida seria totalmente descabida mesmo se o bloqueio ao Telegram fosse integralmente legítimo, pois coloca o usuário comum quase na posição de réu, ignorando o fato de que a empresa responsável pelo aplicativo é que está sendo punida por desobediência, não o cidadão que faz download do software no celular, precisa dele para suas atividades cotidianas e nada tem a ver com o embrolho envolvendo o tribunal.

Por fim, diante do pedido de desculpas do fundador e CEO do Telegram, Pavel Durov, afirmando que houve “falha de comunicação” entre os endereços corporativos, reiterando a disposição da empresa em colaborar com as autoridades brasileiras, é possível que as exigências do tribunal sejam enfim cumpridas. Após atendidas, é importante que haja o imediato restabelecimento das funcionalidades do Telegram no país. Porém, o precedente aberto pelo ministro pode levar a mais instabilidade jurídica envolvendo aplicativos de mensagens. O mais razoável seria que o plenário da Corte se manifestasse no sentido de corrigir excessos na decisão do ministro. Porém, com base no histórico de tudo o que envolve a relação do STF com influenciadores bolsonaristas, esperar pelo melhor pode ser precipitado.

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