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Bolsonaro e o veto à “vacina chinesa”
| Foto: Divulgação

Diante de uma doença como a Covid-19, que já se tornou a principal causa de mortes no país, que se transmite facilmente e velozmente, para a qual não existe ainda um tratamento de comprovação inquestionável e que, justamente por esses fatores, causou uma disrupção sem precedentes na sociedade, destruindo também empregos e negócios, a vacina surge como a maior esperança tanto para salvar vidas quanto para reativar a economia. A julgar pelos resultados que vêm sendo obtidos e pelas dimensões do esforço para se chegar a um imunizante, ela já não é um sonho distante, mas questão de meses. Por isso, as três esferas de governo deveriam estar trabalhando coordenadas para que, assim que surgir uma vacina comprovadamente eficaz e segura, os brasileiros pudessem estar imunizados e finalmente se livrar da pandemia da Covid-19. Mas, neste Brasil polarizado, a depender de quem vencer a corrida mundial pela vacina, uma disputa política pode atrapalhar o que deveria ser uma prioridade comum.

Empresas farmacêuticas, governos e universidades estabeleceram parcerias para desenvolver o quanto antes formas de tornar as pessoas imunes ao coronavírus, e algumas dessas vacinas já chegaram aos estágios finais de testes em humanos. Uma delas é a Coronavac, do laboratório privado chinês Sinovac Biotech, que está sendo testada em voluntários de vários estados brasileiros. Um acordo entre o governo do estado de São Paulo e a Sinovac permitirá que o imunizante, uma vez aprovado para uso, seja produzido no Instituto Butantan, que já fabrica várias vacinas do Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde.

Se a Coronavac for a primeira a superar as fases de testes e conseguir a autorização da Anvisa, não há motivo para que o governo federal deixe de investir na compra de doses para imunizar a população

Na terça-feira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, aproveitou uma reunião por videoconferência com governadores para anunciar que sua pasta havia assinado um protocolo de intenções para adquirir 46 milhões de doses da Coronavac, ressaltando que essas doses seriam produzidas no Brasil, pelo Butantan, e não trazidas da China. Elas se somariam aos 100 milhões de doses da vacina que está sendo desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela sueca AstraZeneca, e que, uma vez aprovada, será produzida no Brasil pela Fiocruz; e aos 40 milhões de doses que devem vir da iniciativa mundial Covax, capitaneada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Foi quando Pazuello se viu sugado pelo antagonismo entre o governador paulista, João Doria, e o presidente Jair Bolsonaro, que tem como pano de fundo a eleição presidencial de 2022. Em resposta a alguns de seus seguidores em mídias sociais, Bolsonaro tratou de matar no nascedouro a ideia de oferecer à população o que chamou de “vacina chinesa de João Doria”. Afirmou, ainda, que “o povo brasileiro não será cobaia de ninguém” e que “qualquer vacina, antes de ser disponibilizada à população, deverá ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa”. Ora, ninguém sequer imaginou algo diferente disso: sempre se deu por certo que as vacinas só seriam oferecidas aos cidadãos com a devida aprovação da autoridade sanitária. O Butantan nem poderia começar a produção da Coronavac sem receber antes o sinal verde da Anvisa.

Mas há algum motivo razoável para se descartar de antemão a Coronavac como fez Bolsonaro? O tempo recorde para o desenvolvimento de uma vacina não pode ser invocado neste caso, já que, neste caso, todas as demais vacinas também precisariam ser excluídas. Resta apenas a suspeita em relação à procedência. Sim, a China é uma ditadura nada transparente e que tem uma responsabilidade ainda não assumida no início da pandemia, quando escondeu dados e puniu médicos que tentaram alertar o mundo sobre o risco do vírus. Mas qualquer vacina – venha da China, do Reino Unido, dos Estados Unidos, da Rússia, de onde for – só será aplicada no Brasil com aprovação da Anvisa. Não só isso: qualquer das primeiras vacinas consideradas aptas para uso da população será avaliada por várias outras autoridades sanitárias mundo afora.

A esperança de qualquer pessoa é de que várias das vacinas em estudo superem com sucesso todas as fases de testes e consigam logo o aval de autoridades sanitárias mundo afora, inclusive a brasileira. Das vacinas em fase final de avaliação, até agora a Coronavac tem se mostrado a mais segura; se ela for a primeira a obter as aprovações, não há motivo para que o governo federal deixe de investir na compra de doses para imunizar a população – mesmo porque elas serão fabricadas dentro do Brasil. Não é um investimento que deve ser deixado a cargo de cada estado ou município, como insinuou o vice-presidente Hamilton Mourão, ao dizer que “todo mundo pode comprar [a Coronavac]. Os estados têm recurso também”.

Bolsonaro costuma se queixar (erroneamente, é preciso dizer) que teve as mãos atadas pelo Supremo Tribunal Federal no gerenciamento da pandemia. Mas a compra e distribuição das vacinas, quando elas estiverem disponíveis, é tarefa na qual o governo federal pode até mesmo assumir o protagonismo, e não há margem para erro ou omissão quando existe a possibilidade de agir para frear de vez a Covid-19 no país. Assim que houver uma vacina comprovadamente eficaz – venha de onde vier –, é obrigação do governo federal investir o que for possível para dar a todos a chance de se proteger do coronavírus. Os brasileiros não podem ser cobaias nem de vacinas sem comprovação, nem de disputas políticas.

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