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O “Bolsonaro que faz” e o “Bolsonaro que fala”
| Foto: José Cruz/Agência Brasil

Quando se trata de consertar o enorme estrago causado por mais de uma década de lulopetismo e de colocar o Brasil no rumo certo sob vários pontos de vista, o governo de Jair Bolsonaro tem feito propostas importantes e conseguido bons resultados. A reforma da Previdência já passou por seu primeiro teste no plenário da Câmara dos Deputados, embora ainda precisa de mais uma votação naquela casa e da tramitação normal no Senado; microrreformas como a MP da Liberdade Econômica vêm para tornar o ambiente de negócios muito mais amigável ao empreendedor; o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia finalmente foi assinado; nos fóruns multilaterais, o Brasil abandonou o viés altamente ideologizado do passado e tem defendido com força a vida e a família, enquanto sinaliza a permanência do país no Acordo de Paris, uma importante ferramenta na questão climática.

Se, nos grandes temas da vida nacional e da inserção brasileira no mundo, o “Bolsonaro que faz” tem feito um grande bem ao país, infelizmente o “Bolsonaro que fala” não tem conseguido o mesmo resultado. O estilo sem papas na língua que fez a fama do então deputado federal é endossado e elogiado por muitos de seus apoiadores, mas o presidente tem cruzado com bastante insistência, e de forma muito preocupante, os limites entre uma desejável sinceridade e a ofensa pura e simples, ou a compreensão equivocada a respeito das prerrogativas de seu cargo e das liberdades democráticas. E, junto com as palavras, pequenas ações acabam perpetuando velhos vícios da política nacional.

Tomemos, por exemplo, o caso do uso de um helicóptero da Força Aérea Brasileira para o transporte de convidados para o casamento do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, em maio deste ano. Apesar da alegação do Gabinete de Segurança Institucional de que se tratava de “zelar pela segurança do presidente (...), bem como de seus familiares”, fica bastante evidente que estamos diante de um caso de uso de recursos públicos para atender a interesses particulares, especialmente porque, até onde se sabe, o próprio Bolsonaro não estava na aeronave. Ainda que o noivo seja um parlamentar e filho do presidente da República, o casamento continua a ser um evento privado, e desta forma deveria ter sido tratado, sem onerar o pagador de impostos.

O presidente tem cruzado com bastante insistência, e de forma muito preocupante, os limites entre uma desejável sinceridade e a ofensa pura e simples

No entanto, Bolsonaro disse não pensar desta maneira. Questionado sobre o tema por uma jornalista na sexta-feira passada, o presidente chamou a pergunta de “idiota” e, com menos de um minuto, deu por encerrada uma entrevista coletiva. No dia seguinte, falou sobre o episódio: “Eu vou negar o helicóptero e mandar ir de carro?”, afirmou. Ora, a questão não é o meio de transporte, mas quem paga por ele. Sendo o casamento um evento privado, o correto seria que a família bancasse o deslocamento, fosse por via terrestre ou aérea, e assim estaria mantido o saudável princípio da impessoalidade, que faz a distinção entre a esfera pública e a esfera particular. O patrimônio público, mantido com o dinheiro do contribuinte, não existe para financiar ações privadas dos detentores de mandato ou cargos públicos.

Bem sabemos que o patrimonialismo, a confusão entre público e privado, persiste na vida nacional: em 2007, a pesquisa publicada pelo sociólogo Alberto Carlos Almeida no livro A cabeça do brasileiro mostrou que 17% dos entrevistados concordavam com a afirmação “se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio, como se fosse uma propriedade”. Mas este é um mal que precisamos extirpar da prática política brasileira, e infelizmente Bolsonaro não contribui para essa necessária moralização quando autoriza e defende este tipo de benefício a um filho – especialmente um filho que já está no centro das atenções devido a outra acusação de favorecimento, envolvendo a nomeação para a embaixada brasileira nos Estados Unidos.

À recaída no patrimonialismo e à defesa explícita dessa prática somou-se, na segunda-feira, a insensibilidade pura. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”, afirmou Bolsonaro sobre Felipe Santa Cruz – o pai de Felipe, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, foi preso por agentes do DOI-Codi e desapareceu em 1974, quando o atual presidente nacional da OAB tinha 2 anos. O presidente fez a afirmação depois de reclamar da atuação da entidade durante as investigações do atentado que Bolsonaro sofreu durante a campanha de 2018 – em janeiro deste ano, a OAB mineira foi à Justiça para impedir que um dos advogados de Adélio Bispo de Oliveira fosse obrigado a revelar quem estava pagando por seus serviços.

Santa Cruz e Bolsonaro são desafetos desde os tempos em que o atual presidente era deputado federal, e o presidente da OAB agiu de forma claramente inapropriada dias atrás, quando chamou o ministro Sergio Moro de “chefe de quadrilha”. É direito de Bolsonaro acreditar que a OAB estava tentando atrapalhar investigações. Mas usar um doloroso episódio familiar para responder ao presidente da OAB ultrapassa os limites da urbanidade e do debate civilizado. Se Bolsonaro quer levantar um debate sobre desaparecidos políticos ou sobre os trabalhos da Comissão da Verdade, tem toda a liberdade para fazê-lo – são discussões importantes que agradariam uma parcela significativa da sociedade. Mas não era este o caso; a menção a Fernando Santa Cruz foi tirada da cartola única e exclusivamente para atingir pessoalmente o presidente da OAB. Ao agir dessa forma, Bolsonaro levou a discussão para um nível rasteiro, demonstrando completa falta de empatia e explorando a memória de pessoas que nada têm a ver com o atentado ou com as supostas mensagens de Moro.

Não se trata, evidentemente, de endossar a visão segundo a qual estamos diante de um ditador enrustido que sonha em trazer de volta o autoritarismo ao Brasil. Nem queremos cair no extremo oposto de considerar que os acertos do presidente justificam ou atenuam suas declarações e ações problemáticas – pois é exatamente o que elas são. Mostram que Bolsonaro ainda não compreendeu totalmente seu papel de presidente de todos os brasileiros, não entendeu ainda a importância de uma imprensa totalmente livre, continua lidando mal com as críticas, e não percebeu que o vale-tudo verbal não é uma tática válida no debate público. Ser sincero e ir direto ao ponto são qualidades necessárias na esfera pública; mas Bolsonaro ainda precisa aprender que elas não são compatíveis com o desrespeito aos demais ou com o uso de tragédias familiares como argumento – além disso, nem toda a sinceridade do mundo, ainda que polida, pode justificar a persistência de práticas como o patrimonialismo. O “Bolsonaro que fala” e que ainda se apega a pequenos atos que não têm mais lugar no Brasil de hoje precisa subir ao nível do “Bolsonaro que faz”, aquele que tem trabalhado pelo país.

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