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Procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba
Procurador Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

O ano é 2020, mas podemos chamar de 1984. A distopia orwelliana, famosa, entre outros aspectos, por cunhar o termo “crimideia” (“thoughtcrime”, no original inglês), está se tornando realidade no Brasil pelas mãos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Nesta terça-feira, por 9 votos a 1, o órgão puniu com pena de censura o procurador Deltan Dallagnol, até pouco tempo atrás coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, por mensagens publicadas nas mídias sociais pouco antes da eleição para a presidência do Senado, ocorrida em fevereiro de 2019. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), derrotado naquela disputa, se sentiu ofendido e acionou o CNMP contra Dallagnol. A nova punição, que ainda pode ser revertida no STF, lhe impõe dificuldades para avançar na carreira e manda um recado a todos os demais membros do Ministério Público: sua liberdade de expressão existe apenas no papel.

Muito já foi dito, neste espaço, sobre o caráter claramente abusivo da perseguição movida contra Dallagnol no CNMP do ponto de vista puramente processual, como o cerceamento da defesa e o fato de o mesmo episódio já ter sido alvo de análise da Corregedoria do Ministério Público Federal, que não viu nas mensagens nenhuma transgressão, fazendo do processo no CNMP uma violação do princípio do non bis in idem. Esse foi apenas um dos motivos pelos quais o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, havia ordenado a suspensão do processo, decisão revertida dias depois pelo colega Gilmar Mendes, que assumiu as ações com a licença médica do decano da suprema corte. O único voto favorável a Dallagnol no conselho, aliás, de Silvio Amorim Junior, mencionou essa violação, ignorada solenemente por todos os demais.

Se o STF não reverter a punição a Dallagnol, em breve a autocensura permeará a atuação pública dos membros do MP

O voto do relator, Otávio Rodrigues Junior – que ocupa a vaga de indicação da Câmara dos Deputados –, surge eivado de falácias e imprecisões que merecem ser apontadas aqui, como quando afirma que Dallagnol “atacou não somente um senador, mas o Poder Legislativo, constituindo violação à imagem do Parlamento”, fazendo uma mistura perigosíssima entre uma instituição e seus membros que, levada ao extremo, impediria qualquer crítica a qualquer autoridade. No que diz respeito especificamente ao Senado como instituição, tudo o que o procurador fez foi manifestar sua preferência pelo voto aberto para a presidência da casa, algo que era direito seu e no que, aliás, era acompanhado por muitos senadores e por milhões de brasileiros atentos àquela eleição.

Quanto à afirmação de que o combate à corrupção regrediria com Calheiros à frente do Senado, parece algo que até as paredes de Brasília sabem muito bem. Que esperança de lisura na política poderia haver com o Senado nas mãos de alguém que coleciona investigações e processos, de ninguém menos que o autor e um dos principais patrocinadores do texto original da Lei de Abuso de Autoridade, que amordaçou juízes, policiais, promotores e procuradores? Quando o relator fala sobre “agentes não eleitos, vitalícios e inamovíveis disputarem espaços, narrativas e, em última análise, o poder com agentes eleitos”, certamente não é algo que se aplica às ações de Dallagnol, que não manifestou preferência por candidato ou pré-candidato algum e não tinha “representante” na disputa, limitando-se a fazer uma avaliação levando em conta o futuro do combate à corrupção.

A observação do relator sobre a “disputa de espaços, narrativas e poder” vem logo após a afirmação de que não se pode “reduzir este caso a um debate sobre liberdade de expressão”. Ora, a liberdade de expressão é, de longe, o tema central em todo esse processo; não é algo secundário que alguém estaria tentando trazer indevidamente para a linha de frente do debate. Celso de Mello também tinha isso em mente quando suspendeu o processo contra Dallagnol, e foi absolutamente certeiro em suas observações, quando começa afirmando que a liberdade de expressão tem, entre outras finalidades, impedir que alguém sofra “qualquer tipo de restrição de índole política, de caráter administrativo ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser igualmente livres para exprimir ideias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante” e conclui defendendo enfaticamente a liberdade de expressão específica dos membros do MP: “qualquer medida que implique a inaceitável proibição ao regular exercício do direito à liberdade de expressão dos membros do ‘Parquet’ revela-se em colidência com a atuação independente e autônoma garantida ao Ministério Público pela Constituição de 1988”.

Os nove conselheiros que votaram pela punição a Dallagnol, portanto, compactuaram com um abuso duplo: condenaram um réu em processo cheio de irregularidades processuais, ao mesmo tempo em que violaram sua fundamental liberdade de expressão. Neste segundo ponto residem os efeitos mais perniciosos da decisão, pois eles vão muito além da pessoa de Dallagnol. Daqui em diante nenhum membro do MP se sentirá livre para emitir opiniões que algum poderoso de plantão possa julgar desagradáveis. Era algo que já se intuía em 2019, quando o mesmo CNMP aplicou advertência ao então coordenador da força-tarefa por afirmações feitas em entrevista a uma rádio e que irritaram o presidente do STF, Dias Toffoli, mas que nesta terça-feira recebe plena confirmação. Se o Supremo não restaurar essa liberdade, em breve a autocensura permeará a atuação pública dos membros do MP, apesar da independência que lhes é garantida pela Carta Magna e pela legislação infraconstitucional.

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