Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu, há quase um ano, que União, estados e municípios tinham “competência concorrente” para realizar ações contra a pandemia que chegava ao Brasil, não foram poucas as autoridades que resolveram entender o termo “concorrente” da maneira mais coloquial, como se precisassem competir entre si. Em Brasília, o governo federal usou a decisão para praticamente lavar as mãos e deixar tudo nas mãos de estados e municípios, alegando incorretamente que o Supremo havia retirado os poderes da União. O bate-cabeça que já dura um ano passou, mais recentemente, a opor até mesmo aliados políticos, como o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, que decretou a antecipação de feriados para criar uma enorme folga de Semana Santa, sem avisar o governador paulista, João Doria, que se irritou com a medida e alegou que a medida teria efeito negativo em outras cidades, especialmente no litoral paulista.
Um ano e 300 mil mortes depois, parece que finalmente emerge entre protagonistas políticos a consciência de que é preciso que todos – Executivo, Legislativo e Judiciário; governo federal, estados e municípios – trabalhem de forma coordenada para ajudar a vencer o pior momento da pandemia no Brasil. Na quarta-feira, após reunião no Palácio da Alvorada entre o presidente da República, Jair Bolsonaro, os presidentes do Senado e da Câmara, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (Progressistas-AL), ministros de Estado e do STF, e governadores de seis estados, anunciou-se a criação de um comitê de crise, com reuniões semanais. O principal articulador da iniciativa foi Pacheco, que ainda ficará encarregado da articulação com os governadores.
Comitês de pouco adiantarão se o governo federal não assumir de vez o seu papel de coordenador dos esforços contra a pandemia
Os grandes ausentes da reunião foram os prefeitos, que manifestaram seu descontentamento por meio das duas entidades que os representam, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) e o Fórum Nacional de Prefeitos (FNP). Esta é uma omissão que tem de ser sanada, criando-se também interlocução com aquelas autoridades que estão, por assim dizer, na “linha de frente”, mais próximas aos cidadãos, assumindo esforços como a vacinação e observando mais de perto os efeitos de todas as medidas restritivas sobre os negócios e as famílias. Os governadores não fazem parte do comitê formalmente (o que já gerou reclamações), mas ao menos têm um interlocutor dentro do grupo; também os prefeitos têm de ser ouvidos ao menos da mesma forma.
Mas comitês de pouco adiantarão se o governo federal não assumir de vez o seu papel de coordenador dos esforços contra a pandemia. Foi o que pediu a CNM em carta assinada por seu presidente, Glademir Aroldi, na véspera do anúncio do comitê. No texto, os prefeitos pediam a Jair Bolsonaro que “assuma, de forma inadiável, seu dever de coordenar a nação, respeitando a população, a ciência e a comunidade internacional, com a humanidade e a empatia exigidas de um chefe de Estado”. Se há um certo ceticismo em relação ao comitê, é porque Bolsonaro deixou a desejar em vários destes aspectos ao longo dos últimos 12 meses; depende especialmente dele mostrar que está disposto a agir com liderança genuína, buscando a cooperação em vez do enfrentamento, ainda que haja divergências sobre vários temas ligados à pandemia, como os protocolos de tratamento e as medidas de restrição aos negócios.
Aroldi ainda pediu a Bolsonaro para “despolitizar a pandemia”. Este último pedido, é verdade, não tem como ser destinado apenas ao presidente da República. Os governadores tucanos Doria e Eduardo Leite (do Rio Grande do Sul), ambos apontados como possíveis adversários de Bolsonaro em 2022, trataram de torpedear a iniciativa assim que foi anunciada. Mas, havendo uma intenção genuína de aproximação e trabalho conjunto da parte do Planalto, não há motivo para governadores colocarem as rivalidades políticas acima da necessidade de união para vencer de vez a pandemia.
Não foram poucos os parlamentares e políticos que lembraram o fato de que quase tudo o que está se costurando agora já poderia ter sido feito um ano atrás, e talvez o Brasil não estivesse chorando tantas mortes, tanto desemprego e tanta pobreza. Sim, muito tempo foi desperdiçado e não tem como ser recuperado. Mas, se há a oportunidade de encerrar o ciclo de irresponsabilidade coletiva que nos trouxe até aqui, ela tem de ser aproveitada, antes tarde do que nunca.
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