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REeleição
O ministro Ricardo Lewandowski, do STF, tem dado diversas ordens ao Poder Executivo em relação ao combate à pandemia de Covid-19.| Foto: Nelson Jr/SCO/STF

Por melhores que tenham sido as intenções daqueles que redigiram a Constituição de 1988, fazendo o máximo para romper com o período autoritário que deixavam para trás, não há como negar que sua extensão e sua abrangência, somadas ao corpo de leis infraconstitucionais brasileiras, criam situações que mantêm o país no atraso e impedem a prosperidade material e o desenvolvimento social. Um exemplo dessa realidade está na decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinando que o governo federal intervenha no estado do Amazonas, em função do colapso sanitário que se instalou na capital, Manaus, pela explosão do número de pessoas afetadas pela Covid-19.

Com o brutal aumento de infecções graves, o colapso atingiu o sistema de internações, faltou oxigênio para socorrer os necessitados, o desespero se instalou e pacientes morreram asfixiados. Diante do quadro gravíssimo, é óbvio que o governo federal deveria ir em socorro do estado e da população e envidar todo esforço possível para superar o caos. O estranho é que isso precise depender de uma ordem de qualquer ministro do STF, como estranha também é a razão pela qual esse assunto foi parar na suprema corte do país. Esse problema ofereceu mais um exemplo de o quanto o Brasil está confuso em matéria de competência, obrigações, responsabilidades e definição legal sobre como uma república federativa deve funcionar.

O episódio em que o STF foi acionado para determinar a ajuda do governo federal ao estado do Amazonas foi típico de um país que não consegue produzir normas claras e eficientes

Nunca é demais lembrar que o Brasil é uma república – na qual há separação entre os assuntos privados e os assuntos de interesse público – e é uma federação composta por uma União federal e estados relativamente autônomos. Cada um dos 26 Estados, além do Distrito Federal, tem sua constituição própria e é composto por um território com os municípios que existem dentro dele. No sistema federativo, os estados têm autonomia e governo próprio eleito pelo povo, e são membros de uma União federal, todos submetidos a uma Constituição Federal que define a divisão de competências, tarefas e responsabilidades entre o ente federal, os estados e os municípios.

Quando surgem impasses ou dúvidas quanto a quem corresponde determinada competência ou responsabilidade, cabe ao STF interpretar a Constituição e esclarecer o que ela diz. Foi justamente nesse ponto que as decisões do ministro mostraram o quanto as leis e normas constitucionais brasileiras são confusas e cheias de ambiguidade. O episódio em que o STF foi acionado para determinar a ajuda do governo federal ao estado do Amazonas – medida, recordemos, mais do que necessária, mas que é um ato administrativo do governo e não deveria ter de ser levada ao tribunal superior – foi típico de um país que não consegue produzir normas claras e eficientes, pois no começo da pandemia o mesmo STF havia sido chamado a decidir sobre a competência de cada ente federativo em relação à Covid-19, sentenciando que quase tudo, inclusive normas de comportamento e isolamento social, também seria responsabilidade de estados e municípios.

O governo federal, ancorado em uma interpretação equivocada da decisão, passou a lavar as mãos, a não ser por algumas ações específicas do Ministério da Saúde. Mesmo considerando o esclarecimento recente do STF, segundo o qual a União não estava sendo “amarrada” nem “perdendo poderes”, fato é que sua decisão permitiu que todas as esferas de governo passassem a poder legislar sobre o mesmo assunto, e isso criou tanta incerteza que agora é necessária uma decisão monocrática de um ministro para que o governo federal vá em auxílio do estado. O despacho do ministro Lewandowski ainda impôs tarefas operacionais, ao dar um prazo de 48 horas para o governo federal apresentar um “plano compreensivo e detalhado acerca das estratégias que está colocando em prática ou pretende desenvolver para o enfrentamento da situação de emergência, discriminando ações, programas, projetos e parcerias correspondentes, com a identificação dos respectivos cronogramas e recursos financeiros”.

O STF há tempo está indo além do que deve ser o papel de uma corte constitucional, em boa parte por culpa das deficiências da Constituição e das leis, determinando o que o Poder Executivo pode e não pode fazer, ou o que deve e não deve fazer. O STF vem ainda substituindo o Poder Legislativo em várias situações, por vezes alegando omissão dos legisladores em cumprir seu papel de regulamentar certos dispositivos constitucionais. Cabe ressaltar que, como tribunal constitucional, o STF age quando provocado, e tem sido norma que políticos, partidos ou instituições batam às portas da corte superior, especialmente quando veem frustradas suas pretensões no fórum adequado para a discussão de leis, o Congresso Nacional, tentando conquistar na corte o que não conseguem conquistar no voto.

O problema é que, precisamente pela deficiência das normas constitucionais e das leis, os ministros do STF, em colegiado ou individualmente, vêm legislando sobre quase tudo, inclusive assuntos menores, como quando o ministro Edson Fachin quis proibir o presidente da República de escolher um reitor de universidade federal entre os três nomes a ele submetidos pelos órgãos universitários, obrigando que seja escolhido o primeiro da lista. Este é um caso de primarismo difícil de explicar por ausência de qualquer princípio de lógica, pois não há qualquer sentido em formar uma lista com três nomes se o presidente da República ficar obrigado a escolher o mais votado; isso significa que não há lista tríplice nenhuma, e a regra se resolveria com uma única frase: “será nomeado como reitor o mais votado no processo eleitoral”.

A atual crise da saúde pública derivada da pandemia foi mais uma oportunidade para confusão a respeito das competências, prerrogativas e obrigações sobre os mais variados temas ligados à pandemia, ao mundo do trabalho e ao isolamento das pessoas em suas casas. As deficiências do sistema federativo, da Constituição e das leis chegaram a tal deformidade, com seus custos econômicos, incertezas e excesso de judicialização, que se tornaram inibidoras do crescimento econômico e do combate ao atraso e à pobreza. Reorganizar a estrutura constitucional e legal do país é mais um desafio que a nação terá de enfrentar, se quiser tornar-se um país desenvolvido.

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