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No último dia 5, a presidente Dilma Rousseff encaminhou ao Congresso Nacional um anteprojeto de lei, em regime de urgência, para instituir cotas para negros nos concursos públicos federais. Pelo projeto, 20% das vagas estariam reservadas a afrodescendentes. O anteprojeto foi anunciado pela presidente durante a abertura da 3.ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, em Brasília. Disse Dilma, na ocasião, sob aplausos: "Essa é uma iniciativa que tem imenso potencial transformador. É exemplo para os demais entes da Federação, estados e municípios, e também poderá influenciar outros poderes, o Legislativo e o Judiciário".

Para avaliar com profundidade a questão das cotas em concursos, primeiro é preciso questionar se as ações afirmativas, em tese, são legítimas – e parece-nos que sim. O Estado pode agir para reduzir desigualdades e corrigir injustiças; diversas modalidades de políticas públicas podem atingir esse objetivo, e entre elas estão as ações afirmativas. Elas podem ser empregadas desde que se cumpram algumas condições: é preciso que respeitem as liberdades democráticas, como a liberdade de iniciativa; que tais políticas tenham um caráter provisório; e que não sejam a única medida adotada para remediar o mal social que ela pretende combater.

Dadas essas condições, é preciso avaliar o uso bem dosado das ações afirmativas e evitar a tentação de tratar as políticas de reserva de vagas (nas quais se inserem as cotas raciais) como política universalizante. Infelizmente, no Brasil o que se verifica é o segundo caso: uma espécie de crença no poder da cota como solução principal para as desigualdades de ordem racial observadas atualmente no país. No entanto, a definição de políticas públicas baseada na visão da cota como panaceia tem efeitos deletérios. O Brasil é um país miscigenado por excelência, em um grau que não se verifica em nenhuma outra nação marcada por um passado escravista. A ideia de universalizar as cotas raciais, aplicando-as em cada vez mais segmentos da sociedade, corresponde a dividir a sociedade pela cor da pele, aprofundando uma clivagem racial que é alheia ao espírito do brasileiro. É por esse ângulo que se deve analisar a questão das cotas nos concursos públicos.

É preciso reconhecer que o Brasil convive com um histórico (e inegável) problema de diferença de condições entre grupos raciais – basta constatar os dados sobre diferenças salariais, ou sobre a sub-representação dos negros em diversos segmentos da sociedade, na comparação com sua participação na população brasileira. Entre as alavancas de ascensão social no país estão o ensino superior, principalmente em faculdades de qualidade, e o serviço público, cujas características (como salários altos e estabilidade no emprego) levam muitos brasileiros a almejar um posto na administração pública. Ampliar o acesso dos negros às universidades e ao serviço público serviria, assim, para colaborar na redução das desigualdades.

O estabelecimento de cotas raciais no serviço público não é a única proposta de ação afirmativa que surgiu nos últimos dias. Houve também a ideia completamente leviana de estabelecer uma porcentagem de cadeiras no Poder Legislativo apenas para parlamentares negros, o que deturparia completamente o conceito de representatividade, como explicou a Gazeta do Povo dias atrás. Querer reservar vagas para deputados e vereadores negros é um exemplo acabado da mentalidade universalizante que descrevemos e que vê as cotas como a grande solução para desigualdade racial no Brasil. É preciso verificar se não é este o mesmo ânimo que impulsiona o projeto de lei enviado por Dilma no dia 5, relativo aos concursos. Em caso positivo, é melhor refletir sobre os efeitos de longo prazo que tais medidas podem causar no tecido de nossa sociedade miscigenada.

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