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Bolsonaro disse na saída do Palácio da Alvorada que "ordens absurdas" do STF não devem ser cumpridas: temperatura da crise entre os poderes sobe.
Bolsonaro disse na saída do Palácio da Alvorada que “ordens absurdas” do STF não devem ser cumpridas: temperatura da crise entre os poderes sobe.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Na manhã de quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro fez um longo pronunciamento diante do Palácio da Alvorada. Comentando a operação da Polícia Federal realizada na quarta-feira, dentro do âmbito do inquérito das fake news criado pelo Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro afirmou que aquele seria o “último dia triste”, em referência às ações ordenadas pelo ministro Alexandre de Moraes contra defensores do governo. Ora subindo o tom, como quando afirmou que “ordens absurdas não se cumprem” e nos seus ataques a veículos de imprensa, ora reforçando a defesa de valores democráticos, como um Judiciário e um Legislativo independentes, e mostrando estar disposto a conversar com líderes dos outros poderes, Bolsonaro se mostrou extremamente contrariado principalmente com o fato de as recentes ações derivarem de decisões monocráticas.

A difusão de notícias falsas, ataques e ameaças a ministros do Supremo – e não apenas contra eles, obviamente –, especialmente se vierem de uma rede organizada para tal, pode e deve ser investigada com rigor. Mas este inquérito, em específico, pela forma como foi instaurado, tem deficiências que já foram amplamente exploradas neste espaço e que apenas aumentam o potencial de crise institucional a cada ação realizada dentro dele. Ainda que a operação desta quarta-feira não tenha sido direcionada a nenhum membro do Poder Executivo, houve determinação de que deputados bolsonaristas fossem ouvidos pela Polícia Federal em até dez dias. Além disso, imagine-se as dimensões da crise que viria caso surgissem evidências que implicassem Bolsonaro ou seus filhos, abalando radicalmente uma governabilidade já bastante prejudicada. Em um inquérito realizado de acordo com os princípios do processo penal, a solução seria simples: que todos respondessem e sofressem as consequências jurídicas e políticas de suas ações. Mas e se essas provas aparecem um inquérito iniciado e conduzido de forma totalmente equivocada? Ainda que elas acabassem anuladas em um julgamento, já estaria aberto um fosso sem fundo entre Planalto e Supremo, com consequências imprevisíveis.

Pela forma como foi instaurado, o inquérito das fake news tem deficiências que aumentam o potencial de crise institucional a cada ação realizada dentro dele

Quais são, assim, as possíveis saídas? Voltamos a afirmar que crises como essas só podem ser resolvidas pelo caminho institucional. A primeira resposta deveria vir do próprio Supremo, e é inexplicável que até hoje o plenário da corte não tenha sido chamado a analisar a legalidade do inquérito das fake news – uma solução com que Bolsonaro parece concordar, a julgar por sua fala de quinta-feira. Quando a Rede Sustentabilidade pediu a suspensão das investigações, o ministro Edson Fachin, relator do pedido, decidiu que era caso para o plenário, mas o presidente da corte, Dias Toffoli, jamais colocou o tema em pauta. Dentro da mesma ação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, também pediu o fim do inquérito na quarta-feira, e Fachin, mais uma vez, encaminhou o tema ao plenário.

No entanto, a Rede pediu a suspensão da ação nesta sexta-feira, com uma alegação bastante controversa: de um inquérito com “inquietantes indícios antidemocráticos”, ele teria se tornado “um dos principais instrumentos de defesa da democracia e da lisura do processo eleitoral”. Ora, se os elementos problemáticos do inquérito não mudaram, pois estão ligados à maneira como ele surgiu, fica óbvio que o pedido da Rede é motivado por pura conveniência política: como as investigações agora se voltam contra o governo, fecha-se os olhos aos tais “indícios antidemocráticos” para ver o bolsonarismo enfraquecido. Com a solicitação da Rede, talvez seja necessário que a corte seja novamente provocada para que o tema vá a plenário, ocasião em que a sensatez dos ministros poderia colocar fim à controvérsia de uma vez por todas.

E se, no entanto, isso não ocorrer? O tema da obediência ou da resistência à “ordem injusta ou ilegal” já consumiu milhares de páginas de boa filosofia política, mas não é nosso objetivo revisitar o debate aqui, bastando-nos admitir que a questão não é tão simples quanto Bolsonaro parece fazer crer ao afirmar que “ordens absurdas não se cumprem”. Felizmente, até agora o presidente e seus apoiadores não partiram para a desobediência nem mesmo diante de ordens das quais discordavam frontalmente, como quando o ministro Celso de Mello pediu a gravação da reunião ministerial de 22 de abril; nem durante a operação policial de quarta-feira houve resistência semelhante por parte dos investigados.

Uma possibilidade vem sendo explorada pelo Ministério Público Federal, como explicamos neste espaço: o órgão está se recusando a apresentar denúncia nos casos em que Moraes fatiou o inquérito e remeteu determinados casos à Polícia Federal nos estados. Os procuradores têm alegado “vício de origem” para pedir o arquivamento das investigações, sendo atendidos pelos juízes de primeira instância. Esta é uma avaliação de cunho puramente jurídico, sem nenhuma paixão política ou ideológica, e que apenas ressalta a fragilidade do inquérito do ponto de vista processual. Uma atitude que poderá ser repetida em Brasília: naquilo que permanecer dentro do âmbito do STF, caberia à Procuradoria-Geral da República oferecer eventuais denúncias, e o órgão tem toda a liberdade e autonomia para não fazê-lo.

Além disso, o ordenamento jurídico brasileiro ainda garante uma série de possibilidades a quem considera o inquérito das fake news ilegal e abusivo, e se sente prejudicado por ele. É dentro deste marco que o governo vem se movimentando até o momento, como na decisão de pedir habeas corpus preventivo para o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que tinha sido intimado por Moraes a prestar esclarecimentos sobre uma frase dita durante a reunião ministerial de 22 de abril – o depoimento acabou ocorrendo na tarde desta sexta-feira, e o ministro permaneceu calado o tempo todo. Além disso, nada impede que ministros do Supremo sejam acionados dentro da Lei de Abuso de Autoridade; o próprio Bolsonaro considera que Celso de Mello, ao mandar divulgar a íntegra da reunião, e não apenas os trechos referentes ao ministro Sergio Moro e à Polícia Federal, teria desrespeitado trechos da lei.

Existem suficientes remédios dentro do marco institucional brasileiro para conflitos como os atuais

O que não se pode admitir é o flerte com a ruptura institucional disfarçada de recurso ao famoso artigo 142 da Constituição, o da “intervenção militar”. Não cabe às Forças Armadas agir como moderadora entre poderes em conflito, como se fossem elas mesmas um quarto poder, dito Moderador. Esta função foi extinta com a primeira Constituição republicana, e parece-nos evidentemente impensável que o constituinte de 1988 quisesse dar esse papel aos militares em um país que acabava de sair de uma ditadura militar. Este é terreno perigosíssimo do qual o presidente se aproxima irresponsavelmente quando, por exemplo, compartilha um vídeo sobre o assunto.

Isso não significa que o STF seja o único poder da República que não está sujeito ao sistema de freios e contrapesos, por mais que, em alguns momentos, pareça agir sem limite algum. No ordenamento brasileiro, é o Senado que exerce esse papel, quando por exemplo tem a prerrogativa, descrita no artigo 52 da Constituição, de analisar pedidos de impeachment de ministros do Supremo – ministros esses, aliás, cuja nomeação foi aprovada justamente pelo Senado.

Existem, portanto, suficientes remédios dentro do marco institucional brasileiro para conflitos como os atuais, e crises semelhantes já foram resolvidas no passado sem o recurso à ruptura. Mas foi necessário muito bom senso e equilíbrio da parte de todos os envolvidos. Que também desta vez cada ator tenha consciência de sua responsabilidade; o objetivo não é acalmar ânimos para meramente transformar um conflito aberto em guerra fria, mas o de atingir uma autêntica pacificação fazendo a lei prevalecer acima de quaisquer convicções e interesses pessoais.

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