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A vice-presidente argentina, Cristina Kirchner, comanda sessão do Senado em que se discute a reforma judicial proposta pelo presidente Alberto Fernández.| Foto: Ronaldo Schemidt/AFP

O kirchnerismo argentino e o caos econômico sempre andaram juntos, desde a época em que Cristina Kirchner era presidente e os dados da economia argentina eram tão maquiados que a revista britânica The Economist havia parado de publicá-los. Em 2015, Mauricio Macri havia sido eleito para interromper esse processo, mas não levou a cabo as reformas liberais que deveria ter realizado e perdeu a reeleição em 2019, quando os argentinos resolveram dar outro voto de confiança à ex-presidente, agora vice na chapa encabeçada por Alberto Fernández. O resultado não poderia ser muito diferente, com dois acréscimos: ao descontrole econômico somam-se a catástrofe sanitária e um avanço sobre o Poder Judiciário que lembra o modus operandi chavista na Venezuela.

O governo de Fernández impôs, no dia 15 de setembro, novas restrições ao câmbio na tentativa de frear um antigo hábito argentino: o de comprar dólares para escapar da desvalorização do peso, que já havia caído 25% na cotação oficial desde a posse de Fernández, em 10 de dezembro do ano passado. O limite máximo de aquisição por mês, US$ 200, estabelecido ainda no fim do governo Macri, foi mantido, mas o imposto sobre a operação foi aumentado e o limite passou também a considerar compras feitas com cartões de débito e crédito – se as aquisições feitas pelo cartão estourarem a cota, ela será reduzida nos meses seguintes.

Os argentinos, tendo vivido sob o kirchnerismo durante boa parte dos últimos anos, não podem se dizer surpresos nem com a derrocada econômica, nem com a degradação institucional

Se o objetivo da nova taxação era eliminar as diferenças entre a cotação oficial do dólar (75,25 pesos no dia 15) e aquela do câmbio paralelo, o chamado blue (131 pesos no dia do anúncio das restrições), a tentativa falhou, o que não é surpresa para ninguém: o blue se adaptou quase de imediato, com nova desvalorização na casa dos 10%. Também as empresas passaram a sofrer novas restrições para a compra de dólares, e as que têm dívida em moeda estrangeira terão enorme dificuldade em cumprir suas obrigações, com impacto severo sobre o comércio exterior.

Enquanto as intervenções do kirchnerismo na economia levam ao desarranjo cambial, outro tipo de intervenção tem um objetivo bastante específico: o de aliviar a barra da atual vice-presidente, investigada e ré em ações judiciais por corrupção durante seu período na Casa Rosada. Em 30 de julho, Fernández apresentou uma proposta de reforma judicial, aprovada no Senado menos de um mês depois, em 28 de agosto, e que aguarda votação na Câmara, onde a oposição tem maioria. A reforma criaria uma série de novas cortes em todo o país, incluindo uma nova Justiça Criminal Federal com 46 tribunais de primeira instância, dobrando o número atual – atualmente, o Fórum Criminal Federal de Comodoro Py, em Buenos Aires, tem 12 varas e há outros 11 tribunais econômicos federais. Em tese, o objetivo seria diluir o poder de Comodoro Py, sobre o qual pairam muitas suspeitas a respeito da lisura dos magistrados e suas decisões. Mas há um detalhe: enquanto o Conselho de Magistratura não define os titulares dos 23 novos tribunais, os juízes interinos serão apontados pelo governo. Qualquer novo processo aberto no prazo de um ano será julgado por esses substitutos, não podendo ser remetido a nenhuma das varas já existentes.

Por pouco também não prosperou na reforma o costumeiro ataque kirchnerista à liberdade de expressão, do qual a Lei de Meios argentina, aprovada durante a passagem de Cristina Kirchner pela presidência do país, foi o ponto máximo. Uma emenda obrigaria os juízes a denunciar “pressões midiáticas” em casos de grande relevância, mas a descrição era tão vaga que até mesmo textos de opinião em jornais poderiam receber essa classificação. Alberto Fernández chegou a ensaiar um apoio tímido à emenda, mas a resistência da sociedade foi tão forte que o autor da mudança optou por retirá-la durante a tramitação no Senado.

Teoricamente, Cristina Kirchner não seria afetada pela reforma, pois seus processos já estão em andamento. Daí a necessidade de uma segunda frente na ofensiva sobre o Judiciário: a remoção dos juízes responsáveis pelos casos envolvendo a vice-presidente. Três deles já foram alijados de seus postos, incluindo aquele que deveria julgar o caso dos “cadernos de propinas”, conhecido como a “Lava Jato argentina”. A decisão teve o respaldo do Conselho de Magistrados, hoje com maioria kirchnerista, sob a alegação de que a transferência desses juízes para os tribunais onde se encontravam até agora tinha ocorrido de forma irregular. No entanto, as mudanças, ocorridas durante o governo Macri, haviam sido aprovadas tanto pelo Conselho de Magistrados quanto pela Suprema Corte de Justiça.

E todo esse esforço para interferir no Poder Judiciário ocorre em meio ao que é classificado como o confinamento mais longo do mundo, iniciado em 20 de março e que segue em vigor, com algum grau mínimo de flexibilização em Buenos Aires nos últimos dias. O país conseguiu manter a Covid-19 sob controle até junho, quando os casos começaram a disparar, apesar das restrições – há cidades onde é proibido até mesmo que as crianças brinquem em parques ou praças. A insatisfação generalizada com a quarentena, a situação econômica e a reforma do Judiciário já levou a protestos que vão das manifestações de rua (até mesmo policiais realizaram as suas passeatas) à desobediência civil de comerciantes, que se organizaram para abrir seus estabelecimentos sem permissão legal.

Os argentinos, tendo vivido sob o kirchnerismo durante boa parte dos últimos anos, não podem se dizer surpresos nem com a derrocada econômica, nem com a degradação institucional que a reforma judicial tenta promover – de novidade, mesmo, há apenas a pandemia. A timidez de Macri em sua tentativa de desfazer o estrago peronista foi tanta que a Argentina se viu incapaz de reverter os péssimos indicadores econômicos, dando a Cristina Kirchner a oportunidade de capitalizar em cima da desilusão, vendendo-se como a solução para o problema que ela mesma criou. O que chamamos, no ano passado, de “prisão mental” imposta pelo populismo peronista à população argentina prevaleceu mais uma vez, afundando ainda mais aquele que já chegou a ser um dos países mais ricos do planeta.

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