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Bolsonaro observa apoiadores em manifestação de 19 de abril de 2020.
Bolsonaro observa apoiadores em manifestação de 19 de abril de 2020.| Foto: Evaristo Sá/AFP

Quem dera as manifestações deste domingo, especialmente em Brasília, tivessem se resumido aos pedidos pelo fim das restrições à atividade econômica ou às homenagens ao Exército no seu dia comemorativo – por mais que, em ambos os casos, todas as recomendações sobre distanciamento social como forma de evitar o contágio pelo coronavírus tenham sido ignoradas pelos manifestantes. No entanto, parte das pessoas que foram às ruas tinha uma pauta muito mais radical, perigosa, inaceitável e, por que não dizer, criminosa: uma ruptura institucional, com grupos pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, e até mesmo a volta do AI-5. O presidente Jair Bolsonaro desautorizou de forma mais enfática estas pautas apenas nesta segunda-feira, após ter se dirigido aos manifestantes no domingo de uma forma no mínimo imprudente, ao fazer críticas sem distanciar-se explicitamente da defesa do autoritarismo, deixando brechas para que interpretassem sua fala como se estivesse endossando o coro dos radicais.

Aos saudosos da ditadura militar – e aos mais jovens, tomados de uma curiosa nostalgia do que nunca viveram –, convém lembrar justamente uma lei gestada na fase final daquele período e que ainda segue em vigor, a Lei de Segurança Nacional (7.170/83). Em seu artigo 17, ela proíbe “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”, e vai além: em seu artigo 22, criminaliza o ato de “fazer, em público, propaganda: I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social (...)”. Ou seja, a ruptura institucional é algo tão grave que sua apologia ou defesa mereceu criminalização explícita, muito além da genérica “apologia ao crime” descrita no artigo 287 do Código Penal. Os que pediram fechamento de Congresso e STF, ou AI-5, se encaixam perfeitamente nesta descrição, tanto aqueles que foram às ruas quanto os integrantes de grupos extremistas que convocaram a manifestação com essa pauta – o que, ressalte-se, não foi o caso dos principais grupos de rua, que se concentraram na questão do isolamento social e nas críticas ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e ao PLP 149, o ex-Plano Mansueto que virou um projeto de auxílio financeiro a estados e municípios sem contrapartidas.

Diante de uma plateia que pede o impensável, como um golpe, não há como ser ambíguo, muito menos incendiário

Além disso, não deixa de ser irônico que os pedidos por um “AI-5” venham à tona justamente neste momento, em que governadores, prefeitos e magistrados são acusados de tomar medidas que restringem as liberdades individuais e chamados de “ditadores” pelos mesmos que agora invocam o socorro das Forças Armadas. São pessoas que cumpriram o ditado “cuidado com seus desejos, pois eles podem se tornar realidade”; afinal, elas já sentem o gosto de viver em um regime no qual liberdades são tolhidas – apenas o “ditador” de plantão não é o seu favorito. Isso deveria ter bastado como lição aos defensores do autoritarismo; lembremos que o AI-5 não se limitou a fechar instituições como o Congresso, mas foi uma agressão sem precedentes contra todos os direitos e liberdades individuais dos brasileiros. Mas, aparentemente, nem a experiência pessoal de viver sob restrições está levando os golpistas a reconhecer o valor da liberdade e da democracia.

E onde Jair Bolsonaro se encaixa nisso tudo? Repetimos aqui as palavras com que iniciamos este texto: quem dera o presidente da República tivesse apenas tratado da retomada da atividade econômica, ou feito elogios à atuação recente das Forças Armadas. Mas não foi assim: Bolsonaro dirigiu-se indiscriminadamente a todos, golpistas ou não (e era impossível não identificar que havia golpistas, dadas as faixas e gritos de guerra), com frases de apoio e menções ao Congresso Nacional que só serviram para alimentar a tensão entre poderes que já vem de vários dias. E incentivar essa disputa é algo ainda mais grave neste momento de emergência, que exige negociação intensa na busca por consensos que preservem a vida e o emprego dos brasileiros.

Defesa de um golpe ou ruptura institucional? Pelas palavras em si, não, mas, dado todo o contexto em que foram proferidas, o presidente não pode se surpreender que o discurso tenha sido visto por muitos como um endosso aos golpistas, motivando justa e necessária reação de presidentes de poderes e diversas personalidades do cenário político nacional. Ainda que não fosse essa sua intenção, a julgar pelas palavras de segunda-feira, fica evidente que Bolsonaro não consegue medir o impacto e o alcance de seus gestos e palavras. Diante de uma plateia que pede o impensável, não há como ser ambíguo, muito menos incendiário.

O que Bolsonaro custa a entender é que ele não é o único a encarnar a vontade popular manifestada pelo voto. Mesmo quando o Congresso Nacional não cumpre suas funções a contento – e razões para crítica não faltam no passado recente, embora também não as faltem para elogios –, ele tem tanta legitimidade quanto o presidente da República; seus quase 600 membros só estão ali porque foram, também eles, escolhidos pelo mesmo povo que elegeu Bolsonaro. E o mesmo se pode dizer, ainda que de forma diversa, dos membros do STF, cuja escolha também envolve os representantes eleitos do povo, pois cada ministro é escolhido por um presidente da República e referendado pelo Senado. Há uma série de mecanismos institucionais que Bolsonaro pode usar caso esteja insatisfeito com a condução de certas matérias pelo Congresso; para usar dois casos recentes, poderia vetar o PLP 149, apresentando um projeto de lei alternativo com a proposta do governo para o socorro a estados e municípios, e poderia reeditar a MP do Contrato Verde e Amarelo para que não caducasse – em vez disso, preferiu revogar a MP, que será substituída por um novo texto voltado exclusivamente para o período da pandemia.

Só na segunda-feira, após horas e horas de (merecida) repercussão negativa, Bolsonaro defendeu “Supremo aberto, transparente, e Congresso aberto, transparente”, diante do Palácio da Alvorada, interrompendo um apoiador que ensaiava um ataque ao STF para dizer que “aqui não tem de fechar nada. Aqui é democracia. Aqui é respeito à Constituição Brasileira”. Eram as palavras que deveriam ter sido ditas no domingo, mas não foram; antes tarde do que nunca, podemos afirmar. Afinal, mais “velhos” que a política que Bolsonaro diz estar disposto a sepultar são o Estado de Direito, a separação de poderes, o sistema de freios e contrapesos, que demonstraram seu valor ao longo de séculos e superaram com tranquilidade o teste do tempo, um critério que todo autêntico conservador conhece de cor.

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