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Ao longo de todo o processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff, ganhou força um discurso que busca igualar os brasileiros não na sua proverbial alegria e generosidade, mas no que é quase a sua antítese: o ódio. Nesta narrativa, o país está polarizado e dominado por arautos da violência em ambos os lados da disputa. Todos querem briga, todos querem incendiar o país. É o tipo de explicação que tem tudo para ressurgir no próximo dia 31, quando está marcada a primeira grande manifestação de rua desde o afastamento de Dilma.

O problema dessa posição é apagar ou ignorar as nuances, fazendo terra arrasada, como se atenuantes ou agravantes não importassem – mas importam, e muito. Todos, independentemente de coloração partidária, hão de concordar, por exemplo, que a incitação à violência não tem lugar em uma sociedade democrática. Mas os líderes sem-terra João Pedro Stédile e Aristides Santos, o líder sem-teto Guilherme Boulos e o sindicalista Vágner Freitas prometeram ou foram recrutados por Lula para ir às ruas com seus “exércitos”, de “armas na mão”, para “botar fogo no país” – e alguns deles foram aplaudidos em pleno Palácio do Planalto por isso! Este comportamento não tem apoio no campo ideologicamente oposto; até há uma minoria antipetista inconsequente que pede golpe militar, mas ela é repudiada pela grande maioria dos manifestantes que desejam a saída de Dilma pelos meios legais, como o impeachment ou a cassação da chapa.

É perfeitamente natural e legítima a indignação contra quem defende o indefensável

Em outro caso, durante a votação do impeachment, o deputado Jean Wyllys se considerou no direito de cuspir em Jair Bolsonaro em plena Câmara, defendendo seu ato nas mídias sociais. A atitude, que mereceria repúdio generalizado, acabou justificada e até elogiada por muitas pessoas de esquerda. O mesmo ocorreu semanas atrás, quando a advogada Janaína Paschoal, coautora do pedido de impeachment de Dilma, foi hostilizada no aeroporto de Brasília.

Assim como no caso da violência, deveria ser consenso que a defesa de ditadores, terroristas e torturadores merece crítica severa. E, de fato, quando Jair Bolsonaro disse suas sandices (pelas quais, aliás, ele deverá responder ao Conselho de Ética da Câmara) em elogio a um torturador da ditadura militar, naquela mesma votação do impeachment, foi repudiado por vários ditos “conservadores” ou “de direita”. Por que, no entanto, não se observa a mesma autocrítica em relação aos deputados de esquerda que citaram terroristas como Carlos Marighella e Carlos Lamarca?

Passando do nível institucional para o pessoal, episódios envolvendo cidadãos comuns também têm sido usados na tentativa de emplacar a narrativa do “ódio generalizado”. Repudiamos veementemente quaisquer atos de violência, inclusive verbal, ou de cerceamento de direitos básicos, como o de ir e vir. Mas até que ponto tudo o que foi divulgado se encaixa efetivamente na categoria de “ódio”, ou “ódio injustificado”?

Após tantas comprovações da participação do governo federal na montagem e na execução de esquemas bilionários de corrupção e do uso do Estado para a construção de projetos de poder partidários, numa verdadeira fraude contra a democracia, não existe mais justificativa aceitável para ficar ao lado do governo ora afastado. A defesa dos ideais de esquerda pode muito bem ser feita sem endossar a corrupção, a incitação à violência ou o elogio a terroristas.

Depois de tudo o que sabemos sobre o mensalão, o petrolão, as tentativas de usar prerrogativas ministeriais para proteger Lula, defender Dilma e o PT é defender o indefensável. E é perfeitamente natural e legítima a indignação contra quem defende o indefensável – desde que respeitados os limites da civilidade, como acabamos de lembrar.

Exteriorizar a indignação não é apenas legítimo: é saudável. Manifestar respeito pelas pessoas, mas firmeza para com ideias e comportamentos abomináveis é um direito de todo brasileiro cansado de corrupção, assim como é natural reagir quando alguém é associado a ideologias totalitárias como o fascismo só por criticar o governo. Não podemos considerar a defesa da ladroagem uma posição moralmente igual, ou igualmente digna de respeito, em comparação com a crítica à roubalheira.

Aquele que, diante da indignação demonstrada de forma firme, mas sem agressões, reage com expressões do tipo “calma, por que tanto ódio?” só está, de maneira sorrateira, tentando calar a legítima indignação alheia.

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