Depois de dizer inúmeros disparates durante sua viagem pela América do Sul, como quando enalteceu a economia argentina, distorceu a história brasileira dizendo que o impeachment de Dilma foi um “golpe”, ou ressaltou que a Venezuela é um Estado livre, Lula, finalmente, disse algo com algum teor de razão.
Em discurso inicial do encontro com governadores na última sexta-feira (27), em Brasília, Lula defendeu que o país volte à normalidade, disse que os Três Poderes devem cumprir seus papeis sem interferir nas atribuições uns dos outros, e criticou a judicialização da política. O presidente falou que vai “mostrar ao povo brasileiro que o ódio acabou”, prometeu “trabalhar muito e conversar muito para que o Poder Judiciário faça o papel do Poder Judiciário, que o Congresso Nacional faça o papel do Congresso Nacional”, e ainda reconheceu a culpa pela judicialização.
Como ressalta o jocoso ditado popular, “De boas intenções, o inferno está cheio”. E de discursos políticos bonitos, feitos só para causar boa impressão, também.
“Nós temos culpa de tanta judicialização. A gente perde uma coisa no Congresso Nacional e, em vez de aceitar as regras do jogo democrático de que a maioria vença e a minoria cumpra o que foi aprovado, a gente recorre a uma outra instância para ver se a gente consegue ganhar. É preciso que a gente pare com esse método de fazer política”, disse Lula aos governadores. Uma rara demonstração de lucidez que, se fosse levada a cabo pelo próprio Lula, poderia ser bastante benéfica ao país.
De fato, é urgente que o país volte à normalidade, deixando para trás as tristes feridas de um processo eleitoral conturbado, marcado por uma polarização excessiva, atuações equivocadas do Judiciário – lembremos os casos de censura a conteúdos taxados erroneamente pela Justiça de fake news – e mesmo desvarios golpistas, que culminaram nos atos de depredação na sede dos Três Poderes em 8 de janeiro. É preciso virar essa página da história o quanto antes e voltar à normalidade.
O problema é que, por mais que Lula adote esse discurso bonito pouco tem feito para pacificar o país. Ao contrário, o que se vê é uma sanha revanchista, que insiste em rotular seus opositores como “golpistas” e anular todos os feitos positivos do governo anterior. Se ainda há, de fato, desvairados que podem ser chamados de “golpistas”, eles são uma minoria; a maioria da população brasileira, com toda razão, permanece firme na defesa das instituições democráticas, e quer apenas ser ouvida e ter seus valores respeitados.
A normalidade do país também passa, necessariamente, pela atuação dos Três Poderes da República dentro do que estabelece a Constituição Brasileira. Quando Legislativo, Executivo e Judiciário se esforçam em cumprir com esmero suas funções sem tentar usurpar o papel de outro poder, temos a tão necessária harmonia entre os Três Poderes. Mas, infelizmente, sabemos que não tem sido assim.
O ativismo judicial e a judicialização da política, como já mostramos inúmeras vezes, são problemas antigos, mas que nos últimos tempos atingiram um nível desmedido. Talvez muitos não percebam, mas eles são a principal fonte que tem alimentado o clima de tensão institucional que vive o país. Até a imprensa internacional se mostra preocupada com o excesso de poder exercido pelo Judiciário no Brasil. Lembremos, a título de exemplo, o caso do inquérito das fake news, aberto em março de 2019, e que levou o STF a ser simultaneamente vítima, acusador e julgador em um mesmo caso, além de ter tomado para si a função de investigação, que cabe ao Ministério Público.
Na pandemia, o Supremo atropelou o Executivo e o Legislativo, tomando decisões que só cabem a representantes eleitos pelo povo. E durante as eleições, o Tribunal Superior Eleitoral concedeu ao seu presidente, o ministro Alexandre de Moraes, o poder de, sem provocação externa alguma – seja de advogado de candidato ou coligação, seja do Ministério Público Eleitoral –, ordenar de ofício a remoção de conteúdos na internet.
Recolocar o Judiciário nos trilhos é um desafio, mas pode ser alcançado e Lula poderia contribuir para isso, se quisesse. Ele poderia, como declarou aos governadores, “trabalhar muito e conversar muito para que o Poder Judiciário faça o papel do Poder Judiciário”, mas também poderia apoiar a criação da CPI proposta pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) para investigar eventuais excessos cometidos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e assim colocar mais luz sobre os limites e o lugar da atuação do Judiciário.
Outra atitude positiva seria Lula e seus aliados renunciarem a qualquer tentativa de usurpação do Legislativo, deixando que mudanças na Legislação, como as regras que regem a prática do aborto no país, sejam feitas apenas pelo Congresso, eleito justamente para legislar em nome dos brasileiros. E abrir mão de tentar judicializar temas que, de novo, deveriam ser de alçada do Congresso.
Como ressalta o jocoso ditado popular, “De boas intenções, o inferno está cheio”. E de discursos políticos bonitos, feitos só para causar boa impressão, também. Se há sinceridade nas palavras de Lula aos governadores, que ele seja o primeiro a colocá-las em prática.
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