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Greve dos caminhoneiros em 2018, na Via Anchieta próximo da entrada para o Rodoanel. São Bernardo do Campo.
Greve dos caminhoneiros em 2018, na Via Anchieta, próximo da entrada para o Rodoanel, em São Bernardo do Campo (SP).| Foto: Fotos: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Quando os caminhoneiros resolveram chantagear o país, em maio de 2018, o governo Michel Temer resolveu ignorar a lei da oferta e da procura e o histórico econômico do país para ceder a um desejo da categoria: o tabelamento do frete. Assim, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), contrariando a própria lei que a criou, publicou uma tabela com preços mínimos, feita às pressas para ajudar a acabar com a greve. Os preços deveriam passar por uma revisão em julho deste ano, e desta vez o trabalho foi muito mais criterioso: pesquisadores da área de Logística da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo, acrescentaram mais elementos ao cálculo, e a consulta pública contou com mais de 500 contribuições. A nova tabela de frete foi publicada no dia 18 de julho e entraria em vigor no dia 20.

Mas ela não durou muito. Imediatamente após a divulgação da nova tabela, os caminhoneiros voltaram a se mobilizar, insatisfeitos com os valores – afinal, todos os critérios técnicos envolvidos na sua elaboração pouco importavam diante do fato de que, em vários casos, o frete mínimo passaria a ser menor que na tabela de maio de 2018. O Ministério da Infraestrutura acusou o golpe e pediu à ANTT que suspendesse a resolução que implantou a nova tabela, para continuar “discutindo” a questão com os caminhoneiros, cujas lideranças estão cada vez mais fragmentadas. Enquanto alguns defendem a radicalização, outros afirmam que a nova tabela foi feita dentro da lei, ainda que discordem dos valores e defendam a conversa com o governo – só não está claro que tipo de concessões esses líderes estariam dispostos a fazer, ou se a “conversa” é só outro meio de dizer que a categoria não aceitará mudança alguma na tabela.

Uma categoria profissional está intimidando todos os poderes da República em nome de interesses corporativistas

Uma nova greve dos caminhoneiros, a esta altura, dificilmente teria o apoio que conseguiu em 2018. No início daquela paralisação, os brasileiros se empolgaram com o que parecia ser uma “rebelião tributária”, “quando a população não aceita mais a legitimidade do governo para tributá-la”, nas palavras do economista e filósofo Eduardo Gianetti da Fonseca, em entrevista dada ao jornal Folha de S.Paulo durante a greve. Mas logo ficou claro que os caminhoneiros brigavam apenas por si mesmos, e não pelo país. Mesmo assim, o fato de a população já estar precavida quanto às reais intenções dos caminhoneiros não reduz o potencial que a categoria ainda tem de causar um enorme dano ao país, nos moldes do que ocorreu um ano atrás.

O desejo de evitar uma repetição de maio de 2018 é a única explicação para que o governo federal não tenha tido a coragem necessária para defender o trabalho da ANTT – um mal menor, já que o tabelamento do frete já causou vários prejuízos ao setor produtivo e a única atitude totalmente correta seria a pura e simples revogação da tabela, que viola flagrantemente a livre concorrência. Curiosamente, o presidente Jair Bolsonaro já deu mostras suficientes de que conhece a origem do problema com os caminhoneiros. “Tivemos um problema lá atrás com o PT. O BNDES ofereceu crédito em excesso para a compra de caminhões, cresceu a frota de caminhões assustadoramente e o transportado permaneceu igual. Lei da oferta e da procura. Caiu o preço do frete”, afirmou Bolsonaro no dia 19. Esse diagnóstico, no entanto, não impediu o BNDES de abrir uma nova linha de crédito para caminhoneiros autônomos em abril deste ano, com um valor de R$ 500 milhões – a única atenuante, neste caso, é o fato de o dinheiro servir para a manutenção dos atuais veículos, e não para a aquisição de novos caminhões.

“Estamos em um país livre e democrático onde impera o livre mercado. Lei da oferta e da procura”, afirmou Bolsonaro na mesma ocasião. Mas o livre mercado não tem imperado para o transporte rodoviário, submetido a um tabelamento que, mesmo definindo apenas valores mínimos, amarra a livre negociação entre as partes, fazendo com que entes privados tenham de se submeter a preços definidos pelo governo. No caso do tabelamento do frete, a violação dos dispositivos constitucionais que protegem o livre mercado é tão flagrante que chega a ser incompreensível a inação do Supremo Tribunal Federal, que poderia resolver o problema simplesmente aplicando a Constituição.

Assim que foi publicada a primeira tabela, em maio de 2018, o setor produtivo recorreu à Justiça alegando a inconstitucionalidade do tabelamento. À medida que as ações geravam decisões divergentes na primeira instância, o ministro Luiz Fux ordenou a suspensão de todas as ações, ainda em junho do ano passado, mas não concedeu nenhuma liminar suspendendo o tabelamento, por mais que estivessem presentes as duas condições clássicas para tal – o periculum in mora (“perigo na demora”), por causa dos prejuízos que o setor produtivo passou a ter com o tabelamento, e o fumus boni juris (“fumaça do bom direito”), pois a suspensão da tabela defenderia a liberdade econômica e a livre iniciativa. O máximo que Fux chegou a fazer foi, no início de dezembro de 2018, suspender a aplicação da multa a quem desrespeitasse os valores mínimos de frete, mas até essa decisão foi revogada dias depois diante da fúria dos caminhoneiros, que ameaçaram nova greve às vésperas das festas de fim de ano.

Assim, o que temos é, mais uma vez, uma categoria profissional intimidando todos os poderes da República – o Legislativo deu sua contribuição quando aprovou a medida provisória de Temer que autorizou a ANTT a publicar a tabela de frete – em nome de interesses corporativistas, sempre brandindo a ameaça de greves que, com frequência, usam de métodos inaceitáveis em uma democracia, como o bloqueio de estradas. Um governo comprometido com a liberdade econômica, como é o de Bolsonaro, age de forma incoerente quando mantém o tabelamento; mas pior é a omissão de um Supremo que, mesmo provocado por todos os lados, hesita em aplicar a Constituição. Menos mal que o plenário da corte já tenha data para analisar a constitucionalidade do tabelamento do frete, mas é uma pena que ainda tenhamos de esperar até 4 de setembro, quando os poderes constituídos já poderiam há muito tempo ter enviado o recado de que o país não voltará a ser feito refém dos caminhoneiros.

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