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O presidente russo, Vladimir Putin.
O presidente russo, Vladimir Putin.| Foto: EFE

Na madrugada desta quinta-feira (24), a Rússia fez o que todo o mundo civilizado tenta evitar, com relativo sucesso, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, na década de 40. Ao dar início ao bombardeio de cidades ucranianas, o exército de Vladimir Putin tenta ampliar seu domínio sobre um país vizinho, sem que este tenha cometido qualquer agressão que justificasse uma medida drástica de autodefesa. Trata-se de um retrocesso, no sentido mais literal da palavra, pois o mundo já foi assim: um sombrio palco no qual nações disputavam por hegemonia com base naquilo que seu poderio militar lhes permitisse conquistar. O resultado sempre envolveu milhões de mortes, desabrigados e feridos, cidades destruídas, economias arruinadas e, claro, a própria noção de dignidade da vida humana brutalmente relativizada até o ponto de parecer inexistente.

A monstruosa tragédia daquele conflito fez a geração de governantes que a viveu perceber do modo mais doloroso que a relação entre as nações precisava evoluir. Isso é admitido textualmente na Carta das Nações Unidas, assinada em 24 de outubro de 1945, após o fim da Guerra: “Nós, os povos das Nações Unidas, decididos: a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas”.

Essa consciência e, acima disso, o firme compromisso com a manutenção da paz que foi gerado naquele tempo, concedeu à humanidade enormes benefícios por décadas. Na maior parte do mundo, a vida ficou melhor. As pessoas passaram a ter mais saúde, conforto e perspectiva de futuro. Um mundo sem grandes guerras deixou as nações mais prósperas e seus governantes puderam dedicar mais tempo e energia a melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos, já que o outrora comum risco de invasão territorial por parte de um inimigo, havia se tornado uma ameaça rara.

Trata-se de um retrocesso, no sentido mais literal da palavra, pois o mundo já foi assim: um sombrio palco no qual nações disputavam por hegemonia com base naquilo que seu poderio militar lhes permitisse conquistar

É bem verdade que mesmo após a 2ª Guerra houve vários conflitos armados no século XX, mas quase nenhum deles foi motivado por mero expansionismo de uma nação militarmente mais poderosa. Mesmo nessas ocasiões, os tratados de paz, as organizações multilaterais, o risco de sanções econômicas e a diplomacia propriamente dita, no fim das contas, acabavam exercendo papel determinante para reduzir tensões e impedir uma anacrônica anexação de terras de uma nação por outra. Talvez, o episódio histórico recente que mais se aproxime do que está acontecendo hoje, seja aquele que tem, justamente, os mesmos protagonistas: a invasão da Crimeia, pertencente à Ucrânia, pela Rússia, em 2014.

A leitura que vários analistas internacionais fizeram do discurso proferido por Vladimir Putin na segunda-feira (21), quando reconheceu como repúblicas independentes as regiões ocupadas por separatistas, é coerente com essa preocupante percepção. Inegavelmente, ele relativizou a soberania territorial ucraniana e o próprio direito da Ucrânia de existir enquanto país independente, imputando, a criação desse Estado a um suposto equívoco das autoridades comunistas da década de 90, quando a União Soviética entrou em colapso.

Fazendo uso de uma prepotência que chamou atenção, inclusive para os padrões de Putin, ele afirmou: “Como resultado da política bolchevique, surgiu a Ucrânia Soviética, que ainda hoje pode muito bem ser chamada de ‘Ucrânia de Vladimir Ilyich Lenin’. Ele é o criador e arquiteto do país. (...) E agora os descendentes destroem os monumentos a Lênin na Ucrânia. E chamam isso de descomunização. Vocês querem mesmo descomunização? Que bom. Mas é desnecessário, como se diz, parar no meio do caminho. Estamos prontos para mostrar o que significa realmente a descomunização da Ucrânia”. Poucos dias depois de proferir essas palavras, temos o ataque a Kiev e a população civil fugindo, desesperada, para as fronteiras com a Romênia. Já não faz sentido supor que Putin fazia uso de mera retórica intimidatória.

Na década de 40, quando o mundo se deu conta de que o violento expansionismo do Eixo não ia parar com sanções econômicas e medidas diplomáticas, tínhamos figuras como Winston Churchill, motivado por uma inabalável convicção estadista, que não fugiu à responsabilidade que a história depositou sobre seus ombros e não cedeu a acordos de conveniência que varreriam para debaixo do tapete os horrores praticados. É angustiante admitir que hoje, em meio a essas circunstâncias, provavelmente não temos no cenário mundial homens da envergadura de Churchill. Mesmo assim, os fatos impõem aos líderes do Ocidente que se superem, que sejam melhores do que eles próprios supunham que seriam, e que garantam à humanidade a manutenção da paz, duramente construída com o sacrifício de gerações.

Para isso, é fundamental que se coloque no horizonte a ajuda militar internacional à Ucrânia agredida, sob risco de assistirmos à ascensão de uma nova ordem nas relações internacionais, completamente absurda. Afinal, nada estimula mais um agressor a manter seus atos do que a certeza da impunidade. Se a resposta das nações comprometidas com a paz for frágil, passiva, muito do que consta em numerosos tratados diplomáticos será atirado no poço da irrelevância, junto das ameaças inflamadas de resposta “rápida e severa” feitas diante das câmeras, mas que não se concretizam em atos.

Talvez, estejamos assistindo ao início de uma encruzilhada civilizacional, e se o lado errado for bem-sucedido, não é exagero supor que elementos sagrados às nações ocidentais das últimas décadas, como os direitos humanos, o estado democrático de direito e a liberdade de expressão, passem a ser ameaçados numa escala assustadora.

O mundo no qual autocracias expansionistas ditavam às regras tendo por fundamento seus canhões foi deixado para trás há muito tempo. Não podemos permitir que ele volte.

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