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Ministério da Saúde anunciou criações de centros de atendimentos para tratamento de pessoas que apresentem sintomas leves de Covid-19 ou síndrome gripal.
Ministério da Saúde mudou a apresentação dos dados sobre a Covid-19 em seu portal.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

A polêmica envolvendo a divulgação de dados sobre a pandemia é fruto de uma inciativa precipitada e atrapalhada do Governo Federal que, se procura dar resposta a um problema real, acaba fazendo pelos motivos errados e de um jeito nada republicano.

Desde a divulgação da primeira morte por Covid-19 em 17 de março de 2020, os brasileiros vêm acompanhando em tempo real a escalada da doença, por meio de informações oficiais veiculadas cotidianamente pelos veículos de comunicação. Do primeiro evento fatal até as 1.382 mortes divulgadas no dia 7 de junho, o país acumulou 37.312 óbitos e 685.427 casos confirmados da doença.

De meados de março até aqui, os números oficiais parecem exibir uma escalada de patamar em que o número de mortos registrados diariamente só cresce. Em 7 de abril, o número de mortos passou pela primeira vez da casa dos 100. Em 19 de maio o país superava a casa das 1.000 mortes diárias. No dia 4 de junho, exatamente 100 dias após a confirmação do primeiro caso no país, o Brasil atingiu o recorde de 1.473 óbitos em 24 horas, configurando uma pessoa morte de coronavírus por minuto.

Foi nesta data que o Governo Federal atrasou pela segunda vez o balanço da pandemia, que passou a ser enviado a partir das 22 horas. A mudança poderia muito bem ter sido objeto de decisão técnica do Ministério da Saúde, porém, uma declaração do presidente no dia seguinte permitiu cogitar uma interferência política nada republicana no tratamento da questão. No dia 5 de junho, questionado por jornalistas sobre o tema, Jair Bolsonaro fez piada com o assunto, declarando que “acabou a matéria do Jornal Nacional”. Em seguida, tentou se corrigir e alegou que o atraso se devia à necessidade de pegar dados mais consolidados, mas não explicou por que, por mais de 70 dias, foi possível consolidar os dados mais cedo. No mesmo dia, o portal do Ministério da Saúde com o balanço da pandemia saiu do ar. Após as 19 horas, retornou, mas apenas possibilitava o acesso aos casos novos, isto é, registrados no próprio dia.

Estrago feito, pessoas de todo o mundo levantaram dúvidas sobre as reais intenções do governo brasileiro em relação aos dados da pandemia. A Universidade Johns Hopkins, reputada instituição que divulga o ranking atualizado dos dados de coronavírus pelo mundo, retirou o Brasil da lista até as 20h15 do sábado. Durante algumas horas, o país esteve na mesma situação que o governo da Coreia do Norte, um dos únicos sobre os quais não constam quaisquer dados confiáveis sobre a pandemia. No domingo, dia 7, o governo informou que voltaria a informar sobre balanços da doença, mas mostrou números conflitantes, divulgados num intervalo de poucas horas, erro que só foi corrigido nesta segunda-feira. Em nota, foi prometida uma plataforma interativa, mas até agora o que se viu foi mais confusão do que no site anterior.

É sabido que, desde o início da pandemia, os números se tornaram objeto de debate entre especialistas e autoridades públicas, com controvérsias ainda bem longe de terminar. As previsões mais catastrofistas parecem não se confirmar, mas o quadro não é nada animador. O número de brasileiros mortos já configura a maior tragédia de saúde pública das últimas décadas. O país caminha para ocupar as primeiras posições em termos proporcionais, numa lição nada animadora para os governantes e a sociedade brasileira como um todo.

Para além desse triste quadro, existem problemas com os dados atuais que precisam ser debatidos, porque devem influenciar diretamente no tratamento da pandemia por estados e municípios nos próximos meses. O primeiro diz respeito à discrepância entre o número real de mortes por Covid-19 ocorridos por data de falecimento e o número de óbitos confirmados a cada dia. A maior parte dos brasileiros não tem formação suficiente para distinguir entre uma coisa e outra, o que gera um problema de avaliação que pode levar muita gente ao desespero, incluindo governantes menos preparados. A questão é que o tempo que se leva para confirmar o diagnóstico de Covid-19 não acompanha a data da morte. Como resultado, o número de óbitos confirmados num dia pode ser distribuído numa curva que se estende ao longo de mais de um mês em alguns casos, não refletindo necessariamente o avanço real das mortes ocorridas no país.

Para se ter uma ideia da dimensão do problema, dos 1.381 óbitos divulgados na quarta-feira passada, 245 foram nas 24 horas anteriores à divulgação e o restante ocorreu ao longo de 60 dias. Segundo o boletim mais recente sobre as datas de óbitos divulgados pelo Ministério da Saúde, o pico da pandemia foi registrado em 12 de maio de 2020, quando 670 brasileiros morreram da doença. Analisando os dados por esse viés, fica bem mais claro porque há uma discrepância grande entre os mortos anunciados diariamente no noticiário e as declarações de autoridades sanitárias em diversos estados e municípios, que enfatizam que o pior já passou. Em São Paulo, por exemplo, a lotação das UTIs no estado segue estabilizado na casa dos 83% para a grande capital e 70% para o estado. Em termos de diminuição de atendimentos, já há notícias positivas no Rio de Janeiro, em Recife, Manaus e outras grandes cidades brasileiras.

Ainda assim, o noticiário segue falando de um brasileiro morto por minuto, o que gera uma dissociação cognitiva, com potenciais efeitos sobre a pressão da opinião pública em cima de gestores que desejam agir em cima das informações mais confiáveis, nem sempre devidamente destacadas. É claro que parte disso tem a ver com a estratégia de comunicação adotada pelo Governo Federal desde o início da pandemia, que nunca fez as devidas ressalvas com a ênfase necessária para que os dados pudessem ser acompanhados com mais atenção pela população.

Isso não quer dizer que a quantidade de mortos é necessariamente menor. Com o fechamento do balanço diário e casos se atualizando corretamente, o que há 60 dias era um pico de 670 mortos pode se transformar em 700 ou até mais de 1.000, a depender do final da contagem. Esse ponto, levantado por muitos especialistas, também deve ser levado em consideração. Para além disso, há os casos de subnotificação, que vem sendo objeto de debate, com discrepâncias gritantes entre alguns estados.

Diante desse cenário, as mudanças nas metodologias de divulgação e mesmo na contagem dos casos de Covid-19 devem obedecer a critérios técnicos para a orientação das políticas públicas, bem como à necessidade dos brasileiros de terem acesso a dados transparentes.

A forma como Jair Bolsonaro vem comunicando suas decisões desde o início da pandemia, do posicionamento sobre isolamento social aos critérios envolvidos na contabilização e divulgação de dados, passando pelo estabelecimento do protocolo de uso da hidroxicloroquina, denuncia um amadorismo que termina colocando em cheque a as medidas implementadas até aqui para a solução da crise sanitária.

O presidente precisa parar de pensar naqueles que considera seus inimigos e não transformar todas as medidas do governo em iscas para a guerra cultural nas redes sociais. São vidas que estão em jogo, afinal.

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