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| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Pela primeira vez desde que a atual Constituição entrou em vigor, uma unidade da Federação está sob intervenção federal. O presidente Michel Temer assinou o decreto que passa para a União a administração do sistema de segurança pública do Rio de Janeiro. O caos observado no carnaval foi, aparentemente, a gota d’água para a decisão, que vai além das já costumeiras presenças de tropas federais, seja das Forças Armadas, seja da Força Nacional, para auxiliar no combate à criminalidade no Rio.

O cidadão, tanto da cidade quanto do estado do Rio de Janeiro, está abandonado das mais diversas formas. A mais evidente é a rendição total à criminalidade. Arrastões, assaltos, tiroteios, homicídios, chacinas e o que mais a criatividade dos bandidos permitir ocorrem a toda hora e em qualquer lugar, sem que as forças de segurança tenham como reagir ou impedir – o alívio visto durante os megaeventos esportivos de 2014 e 2016 foi ilusório, restrito aos locais de maior circulação de turistas e pessoas envolvidas com o evento. O arsenal à disposição do tráfico é tão desproporcional que já não faz tanto sentido falar em “armas de uso restrito” referindo-se à polícia ou ao Exército, tamanha a frequência com que essas armas são encontradas entre traficantes; melhor seria falar em “armas de uso restrito das facções criminosas”, já que o armamento à disposição da bandidagem parece bem mais variado, letal e atualizado que o do Estado. A criminalidade permeia tanto a vida do carioca que nem o carnaval escapa – a ligação entre bicheiros e escolas de samba é antiga e nunca se fez muito esforço para escondê-la, a ponto de o sambista Neguinho da Beija-Flor ter dito, em 2015, que “se não fosse dinheiro da contravenção, hoje não teríamos o maior espetáculo audiovisual do planeta”.

O cidadão, tanto da cidade quanto do estado do Rio de Janeiro, está abandonado das mais diversas formas

A população também foi abandonada por sua classe política, personagem frequente do noticiário policial. Todos os ex-governadores eleitos do estado desde 1998 – Sergio Cabral, Anthony e Rosinha Garotinho – estão presos. Em novembro do ano passado, o presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e outros dois deputados foram presos em uma operação que investiga pagamento de propina por empreiteiras e empresas de transporte coletivo. Tanto a Comissão de Constituição e Justiça quanto o plenário da Alerj votaram pela revogação da prisão. No próprio campo da segurança, a má administração arruinou um bom projeto, o das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs); preferindo a fanfarra ao trabalho duro, o governo estadual ignorou o alerta feito desde o início por seu criador, o então secretário José Mariano Beltrame, de que apenas a presença das forças de segurança de nada serviria se os morros não fossem “ocupados” por serviços públicos de qualidade. E, para completar o estrago, políticos corruptos afundaram as finanças de um estado que, graças ao turismo, à indústria do petróleo e aos royalties do pré-sal, tinha todas as ferramentas para manter as contas em ordem: há meses os funcionários públicos precisam conviver com o atraso no pagamento de seus salários.

A omissão política e a bandidagem se retroalimentaram – Leonel Brizola, eleito governador do Rio em 1982, prometia em campanha que “no meu governo polícia não sobe morro”. O contexto era o do fim da ditadura, quando a polícia ainda era vista mais como agente político que como força para garantir a segurança do cidadão, e isso explicou a aprovação inicial que a nova política obteve. Mas o resultado, no médio prazo, não poderia ter sido outro: o tráfico ganhou carta branca para dominar os morros, com a primeira das facções criminosas nacionais, o Comando Vermelho, colocando em prática os métodos aprendidos em anos de convivência com terroristas de extrema-esquerda no presídio da Ilha Grande, durante os anos de chumbo.

Leia também: A intervenção federal no Rio e a especificidade da crise fluminense (artigo de Christian Lynch, publicado em 16 de fevereiro de 2018)

Leia também:  O caos no Rio de Janeiro (editorial de 17 de novembro de 2017)

Mas esses não foram os únicos ingredientes para levar o Rio de Janeiro ao caos. A destruição também teve um componente acadêmico e cultural. A demonização da polícia e a consequente exaltação da pobreza e até mesmo da violência – vista ou como ação “revolucionária”, ou como reação de “vítimas da sociedade” – se tornou lugar-comum no ambiente universitário e entre parcelas influentes da classe artística e da intelectualidade. Quando esse tipo de pensamento ganha ares de sofisticação, vemo-nos diante de correntes alternativas do direito e teorias que defendem um afrouxamento da ação estatal em relação ao criminoso, especialmente quando se trata do sistema penal-prisional.

Nada disso é exclusivo do Rio de Janeiro – o retrato traçado pode se aplicar a muitos outros locais Brasil afora. Por isso mesmo a intervenção no Rio precisa abrir os olhos das autoridades em todo o país para a escalada da violência urbana. Não se pode alegar a excepcionalidade do caso fluminense para fingir que está tudo sob controle – isso é transformar o brasileiro no proverbial sapo em água fervente cuja temperatura aumenta aos poucos, matando-o sem que ele perceba. Foi assim que o cidadão do Rio de Janeiro se tornou presa do crime: aos poucos, e não da noite para o dia. Que ele possa, em breve, celebrar a oportunidade de ter de volta um pouco da ordem e da liberdade de ir e vir que estavam perdidas, mas a vitória contra a violência exigirá mudanças muito mais profundas. Do contrário, corremos o risco de ver o caos de volta assim que a intervenção terminar.

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