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Imagens mostram João Alberto sendo espancado por seguranças na loja do Carrefour em Porto Alegre: morto por asfixia. - Carrefour
Imagens mostram João Alberto sendo espancado por seguranças na loja do Carrefour em Porto Alegre: morto por asfixia.| Foto: Reprodução

Apenas a falta completa de sensibilidade a respeito da dignidade da vida humana pode explicar as cenas de barbárie ocorridas em um supermercado de Porto Alegre (RS), na quinta-feira, dia 19 de novembro. Dois seguranças, aos quais se juntou depois mais um funcionário do estabelecimento, espancaram e mataram João Alberto Freitas, 40 anos. Agredido com socos na cabeça e no abdômen, Freitas morreu por asfixia após um dos seguranças tê-lo sufocado com o joelho. Tudo isso diante da esposa da vítima, Milena Borges Alves.

Despreparo completo da parte dos seguranças – empregados de uma firma terceirizada –, ou um surto particularmente insano da chamada “síndrome do pequeno poder”, pouco importa: ao julgar, condenar e executar a sentença de morte sobre Freitas, tudo isso em poucos minutos, os seguranças e os funcionários do supermercado envolvidos negaram a civilização e se assumiram bárbaros. Não há como justificar ou defender o que ocorreu. Nem mesmo o fato de Freitas ter se desentendido com uma funcionária no interior do estabelecimento, o que deu início a todo o episódio; nem mesmo o fato de Freitas ter acertado um soco em um dos seguranças, nada disso justifica o desfecho mortal. Freitas deveria ter sido contido e entregue à polícia, que poderia ou não prendê-lo em flagrante. Qualquer ação além disso já seria ela mesmo criminosa, e pouco importam as alegações da defesa dos seguranças, de que não houve intenção de matar: quem se ajoelha sobre o pescoço de alguém sabe muito bem o que está fazendo e como aquilo pode terminar.

Não é preciso que tenha havido racismo para que lamentemos a morte de João Alberto Freitas como sintoma de uma falência moral generalizada, em que se dá tão pouco valor a uma vida humana a ponto de haver indivíduos que se julgam na posição de matar por quase nada

Também é profundamente lamentável o fato de tudo isso ter ocorrido às claras, diante de cerca de 15 pessoas – número mais que suficiente para conter a agressividade dos vigilantes –, e, além da esposa de Freitas, apenas mais uma pessoa ter esboçado reação para impedir a execução, sendo prontamente impedida por uma funcionária que chamou outros seguranças e, ainda por cima, tentou intimidar quem registrava a violência. As omissões, por vezes, falam tão alto quanto as ações. Pode-se até compreender quem não tenha interferido por medo de ter o mesmo fim de Freitas, mas quem presenciou a cena e se omitiu por concordar com ela também já aderiu à barbárie; e quem filmou em vez de agir pode até ter pensado estar prestando um serviço relevante à sociedade ao não deixar uma agressão passar despercebida, mas também perdeu de vista que a primeira obrigação diante de uma situação dessas é a de socorrer a vítima, não a de registrar sua morte.

E, antes mesmo que Freitas fosse sepultado, ele já vivia um segundo justiçamento, com seu passado sendo desenterrado não por uma lícita necessidade de informar quem era a vítima, mas como uma espécie de justificativa, embutindo ali uma torta lição de moral: a de que quem leva esse tipo de vida mais cedo ou mais tarde encontrará o fim que vinha buscando. Ora, isso não deixa de ser mais uma forma de defender o indefensável. Por mais críticas que alguém possa ter ao sistema judicial e penitenciário brasileiro, por mais que alguém creia que Freitas nem deveria estar em liberdade, nada disso justifica execuções extrajudiciais. Ninguém, absolutamente ninguém, pode simplesmente ser sufocado até a morte em um supermercado. Isso vale para santos ou crápulas, homens ou mulheres, negros ou brancos.

Esta última observação nos recorda que a morte de Freitas, que era negro, também vem sendo tratada como um caso de racismo, o que acrescentaria uma camada abjeta sobre o que por si só já é suficientemente bárbaro. Como bem lembrou o colunista da Gazeta do Povo Paulo Cruz, esta é uma hipótese que não pode ser descartada, mas só as investigações mais aprofundadas terão como confirmar se a cor da pele de Freitas serviu para intensificar a fúria assassina dos seguranças. E, ainda que se venha a descobrir que não houve motivações racistas no caso específico de Porto Alegre, não há como aprovar manifestações como a do vice-presidente Hamilton Mourão, para quem não haveria racismo no Brasil. Que um brasileiro negro vive situações de desconfiança e discriminação pelas quais um brasileiro branco não passa é uma verdade tão autoevidente quanto tantas outras mazelas nacionais.

E não é preciso que tenha havido racismo para que lamentemos a morte de João Alberto Freitas como sintoma de uma falência moral generalizada, em que se dá tão pouco valor a uma vida humana a ponto de haver indivíduos que se julgam na posição de matar por quase nada – e nisso o segurança que sufoca Freitas não difere do assaltante que puxa o gatilho da arma; ambos fazem suas escolhas guiados pela desumanização da vítima. Que algo assim ocorra enquanto outras pessoas que poderiam ter coibido o ato brutal se omitem ou agem para impedir que outros intervenham só ressalta o tamanho dessa deterioração moral.

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