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 | Nelson Jr.SCO/STF (04/12/2018)
| Foto: Nelson Jr.SCO/STF (04/12/2018)

Uma página das mais lamentáveis da história da magistratura brasileira foi escrita nesta terça-feira, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski ameaçou de prisão, dentro de um avião, um advogado que fez críticas à corte suprema. A maneira como o magistrado se portou diante das críticas de Cristiano Caiado de Acioli no voo entre os aeroportos de Congonhas (SP) e Brasília (DF) foi, na menos grave das hipóteses, arbitrária; na pior delas, terá sido uma ilegalidade, se não um crime.

As cenas foram registradas em vídeo, com a crítica de Acioli ( “Ministro Lewandowski, o Supremo é uma vergonha, viu? Eu tenho vergonha de ser brasileiro quando eu vejo vocês...”) e a ameaça do magistrado, que pergunta: “Vem cá, você quer ser preso?”. O ministro nem precisa elevar o tom de voz; o próprio teor do que diz já é suficientemente esclarecedor a respeito do que Lewandowski pretende. E aqui começa o arbítrio: Acioli seria preso pelo quê? Afinal, seu comportamento não colocava em risco a segurança do voo, nem das demais pessoas a bordo. Seria por exercer sua liberdade de expressão ao criticar o Supremo? A nota emitida pelo gabinete de Lewandowski na noite de terça-feira fala em uma suposta “injúria ao Supremo Tribunal Federal”, algo que não tem o menor fundamento, levando-se em consideração as palavras usadas por Acioli.

Ameaçado de ser preso sem motivo, Acioli descobriria, ao fim do voo, que o arbítrio o continuaria perseguindo. Em uma das versões publicadas pela imprensa, um servidor técnico judiciário entrou na aeronave e manteve Acioli dentro dela até que todos os demais desembarcassem, sem dizer ao advogado por que ele estava sendo retido; em outra versão, Acioli foi abordado pela Polícia Federal no saguão de desembarque do aeroporto brasiliense. Independentemente do que ocorreu logo após o pouso, o fato é que Acioli foi levado à Superintendência Regional da Polícia Federal para “prestar esclarecimentos” que lhe tomaram toda a tarde, já que o voo havia ocorrido no fim da manhã e o advogado só foi liberado por volta das 17 horas.

A responsabilidade de Lewandowski é tanto maior quanto é a dignidade de seu cargo

Um cidadão é levado a uma instalação policial sem saber de que estava sendo acusado, para “prestar esclarecimentos” por algo que está muito longe de ser um crime, por exercer sua liberdade de expressão. Tudo isso porque um ministro do Supremo Tribunal Federal ficou incomodado com críticas e ameaçou prendê-lo. Em uma ironia absurda, tanta arbitrariedade vem justamente de um ministro que considera inaceitável um criminoso começar a cumprir sua pena mesmo depois da condenação em segunda instância, que tem atuado de forma enfática para reduzir penas ou inocentar acusados de corrupção nos maiores escândalos da história do país, que é visto como “garantista”, em referência à defesa dos direitos de réus e condenados. Pois Lewandowski, que aplica o garantismo quando se trata de corruptos notórios, não foi nada garantista diante de alguém que apenas resolveu usar sua liberdade para criticar o Supremo e seus membros.

Entidades da magistratura que saíram em defesa de Lewandowski disseram, em nota, que a liberdade de expressão “não autoriza a prática de agressões pessoais, a invasão da privacidade ou o desrespeito às instituições e a perturbação de voos”. Além de os elementos disponíveis até agora não permitirem concluir que algo assim tenha ocorrido, a nota ainda tenta ser mais realista que o rei, pois atribui a Acioli condutas que o próprio gabinete do ministro não cita. A Polícia Federal instaurou inquérito para apurar o caso, mas não pode se limitar a analisar as ações do advogado; o fundamental é que a PF também verifique se as atitudes de Lewandowski desrespeitaram ou não a lei de abuso de autoridade atualmente em vigor. Entre as diversas circunstâncias que constituem abuso de autoridade, a Lei 4898/65 descreve, em seu artigo 3.º, o atentado “à liberdade de locomoção” e, em seu artigo 4.º, “ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.   

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Mas, ainda que se conclua que Lewandowski não cometeu crime, há a possibilidade de ilícito civil; mesmo que nem isso tenha ocorrido (talvez por deficiência ou imprecisão da própria lei), a maneira como ele se portou recorda o que há de pior no país da carteirada, do “você sabe com quem está falando?”, em que as relações se pautam pela imposição da força que deriva do cargo ocupado por alguém, e não do respeito aos direitos individuais. Especialmente sintomático é o fato de a ameaça de prisão ser a primeiríssima coisa que Lewandowski diz. O ministro, diante da crítica de Acioli, não resolve contra-argumentar, nem mesmo ignorar o advogado na tentativa de fazê-lo desistir – joga de imediato a carta da prisão. Por mais que ninguém goste de ser interrompido, interpelado e filmado como Lewandowski foi, nada parece indicar que Acioli tenha passado dos limites da civilidade em qualquer momento; reagir como o ministro reagiu foi claramente um excesso – um excesso perigoso, já que colocou na balança a própria liberdade do advogado.

Os brasileiros não lutaram contra o arbítrio por décadas para que, agora, um ministro do Supremo Tribunal Federal, pelo simples fato de ter se incomodado com críticas dirigidas à instituição de que faz parte, se ache no direito de cassar a liberdade de expressão e mandar prender um cidadão sem motivo. A responsabilidade de Lewandowski é tanto maior quanto é a dignidade de seu cargo. Como guardião da Constituição, ele sabe muito bem o valor das liberdades previstas na Carta Magna, e justamente por isso não pode escapar de um episódio desta magnitude como se ele não tivesse plena consciência do que fez, ou como se sua atitude não fosse assim tão grave. Lewandowski agrediu as liberdades individuais, os direitos do cidadão, a democracia; seu ato exige investigação e, se for o caso, ação do Ministério Público. Ao usar uma ameaça de prisão para calar uma crítica, Lewandowski se portou não como defensor da lei, mas como alguém acima dela, um perfil que não tem lugar em nossas instituições.

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