• Carregando...
 | Ricardo Stuckert/Instituto Lula
| Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

No instante seguinte ao momento em que o presidente Jair Bolsonaro, no parlatório do Palácio do Planalto, afirmou colocar-se “diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo”, vários de seus críticos lançaram a pergunta: que socialismo era esse de que os brasileiros, por meio da eleição de Bolsonaro, estariam se livrando? O tom de ironia era aquele mesmo que, durante a campanha eleitoral, transformou em piada a “União das Repúblicas Socialistas da América Latina” que o candidato Cabo Daciolo citou em pergunta a Ciro Gomes no primeiro debate entre os postulantes à Presidência. Mas, ao contrário da “Ursal”, que já nasceu como deboche, o socialismo que Bolsonaro descrevia em seu discurso não tinha nada de imaginário – a começar pelo fato de o país ter sido governado, durante três mandatos e meio, por um partido que, no primeiro artigo de seu estatuto, se propõe a construir o “socialismo democrático” (o que quer que isso signifique).

A mentalidade do Estado provedor, aquele que toma para si a tarefa de resolver os problemas da sociedade, não chegou ao Brasil com o petismo – é bem anterior a ele. Em um país marcado pela pobreza como o nosso, era quase inevitável que a Constituição de 1988 fosse profundamente marcada pela ideia do protagonismo do poder público na garantia de padrões mínimos de dignidade humana e na oferta de serviços essenciais, considerados como “dever do Estado”. Décadas antes disso, no pós-Segunda Guerra, diversas nações europeias já haviam adotado o Estado de bem-estar social (ou Welfare State) baseado na social-democracia.

E não é difícil entender por que esse ideário é palatável a muitos que têm ojeriza ao socialismo, já que o Welfare State pretende, em tese, combinar o respeito ao livre mercado com uma forte preocupação social. Além disso, mesmo programas de caráter mais social, como o Bolsa Família, não deixam de seguir a lógica dos vouchers defendidos por muitos teóricos do liberalismo econômico. É inegável que o combate à pobreza efetivamente exige certa distribuição de renda, especialmente no caso dos mais miseráveis, e aceitar a ação estatal nesta área ainda está longe de configurar uma adesão ao socialismo.

O petismo não hesitou em direcionar recursos do país no apoio a outros regimes socialistas, ditatoriais ou não

Mas, quando o Estado se assume como a fonte primária da assistência social ou de serviços como saúde e educação, ele cobra um preço muitas vezes invisível, mas sempre alto. A sociedade é lentamente atrofiada, acomodando-se sob o argumento de que paga seus impostos para receber de volta esses serviços, enquanto espera e exige cada vez mais Estado. Se de fato é preciso haver um retorno digno dos tributos pagos, isso não significa que o protagonismo na área social deva ser do Estado; essa tarefa é da sociedade, que o Estado socorre de forma subsidiária, quando percebe que as instâncias inferiores têm dificuldade em cumprir determinadas tarefas.

Além disso, o poder público, na condição de provedor, frequentemente se coloca na posição de exigir em troca a anuência da sociedade em outros temas, nos quais o intervencionismo assume ares dignos dos regimes ostensivamente socialistas. É assim que, por exemplo, o Canadá e nações escandinavas têm avançado cada vez mais no sentido de limitar o poder das famílias sobre a educação moral das crianças – em um caso extremo, uma família perdeu (e depois recuperou) a guarda dos cinco filhos na Noruega, após a denúncia de um diretor de escola que discordava das convicções religiosas da família.

Não são poucos os que argumentam que o PT no poder foi mais social-democrata que propriamente socialista. Mas o petismo não se limitou ao que poderíamos chamar de versão “suave” do socialismo, a do Estado provedor e intervencionista. Uma versão “dura” dos ideais socialistas também foi aplicada no Brasil durante o petismo. O empresário não é mais o “burguês” da terminologia marxista clássica, mas continuou a ser demonizado na figura do “patrão” sempre inescrupuloso, que precisava ter suas asas cortadas pela hiper-regulamentação e pela vigilância constante – consequentemente, o protagonismo na atividade econômica jamais poderia ser da iniciativa privada, mas do Estado, onde isso fosse possível. As políticas identitárias e um necessário combate à discriminação sofreram uma distorção que levou à divisão da sociedade em vários compartimentos tratados como antagônicos, fomentando rivalidades. E, por fim, o petismo não hesitou em direcionar recursos do país no apoio a outros regimes socialistas, ditatoriais ou não, em atitude de camaradagem ideológica, e não de atenção ao interesse nacional.

Leia também: A ameaça do PT à democracia é real (editorial de 8 de outubro de 2018)

Leia também: A ditadura venezuela e seus cúmplices brasileiros (editorial de 24 de setembro de 2018)

Tudo isso, claro, sem que um único tiro precisasse ser disparado. Afinal, já há mais de meio século o arcabouço teórico socialista dispensou os meios violentos para se impor o socialismo em uma nação. O italiano Antonio Gramsci traçou o roteiro pelo qual os socialistas conseguiriam fazer prevalecer o seu ideal, começando pela tomada de espaços em instituições como a escola, a imprensa e as igrejas, para assim criar o ambiente intelectual que permitiria a ascensão dos socialistas ao poder usando as ferramentas da democracia. E, uma vez ali instalados, levariam a ocupação de espaços à máquina pública, até que todo cargo relevante estivesse nas mãos dos socialistas, estrangulando lentamente o que pudesse apresentar algum tipo de resistência. Esse programa foi levado a cabo pelo lulopetismo e só falhou, segundo o próprio PT, porque o partido não conseguiu colocar o cabresto na imprensa, no Ministério Público, na Polícia Federal e nas Forças Armadas – a constatação está em resolução do partido aprovada em maio de 2016, com Dilma Rousseff já afastada provisoriamente da Presidência.

Portanto, podemos concluir que ainda há muito “socialismo” do qual o Brasil realmente precisa se libertar. Não será tarefa fácil, pois a estratégia gramsciana continuará a ser aplicada país afora, e não faltarão tentativas de trazer de volta esse ideário ao poder. É ótimo que o governo esteja disposto a combater uma ideologia que atrofia a sociedade, desrespeita direitos básicos das famílias e chega a produzir miséria e tirania. Mas o aparato estatal não pode chegar a todo lugar – e nem é desejável que isso ocorra. Bolsonaro, em seu discurso, não disse que seria ele a libertar o Brasil do socialismo, mas “o povo”. A sociedade é que tem de perceber os males dessa ideologia e assumir seu papel na construção da democracia, no estímulo à livre iniciativa e ao associativismo, no repúdio à divisão da sociedade, na defesa das liberdades e convicções dos indivíduos e das famílias. Sem isso, os esforços de qualquer governo naufragarão.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]