Desde o fim da apuração do segundo turno da eleição presidencial de 2022, em que Lula venceu Jair Bolsonaro por uma estreitíssima vantagem, milhares de brasileiros tomaram as ruas. Eles demonstram uma indignação que, se não é tão difusa quanto aquela que motivou as manifestações de 2013, também tem várias motivações e intenções que precisam ser analisadas com muita serenidade, empatia e equilíbrio, algo que tem faltado com frequência a diversos setores da imprensa e da cúpula do Judiciário, que de imediato passaram a qualificar os atos como “antidemocráticos” ou “golpistas”, como se a intenção de uma parte não desprezível da população brasileira tivesse essa conotação.
Os manifestantes que têm se postado diante de quartéis dia após dia, Brasil afora, têm um rol importante de reivindicações, muitas perfeitamente legítimas, mas é inegável, como fica patente pelo próprio local escolhido, que a pauta prioritária é uma interferência das Forças Armadas no processo político, como se coubesse a elas uma intervenção para restaurar a ordem institucional que os manifestantes julgam rompida. Em termos objetivos, pedem algo que caracteriza, sim, uma ruptura do funcionamento constitucional normal dos poderes de Estado, algo que, à luz de uma correta interpretação da nossa Carta Magna, pode ser considerado – objetivamente, volte-se a dizer – um golpe, um atentado à democracia, claramente ilícito. Estariam, portanto, incorrendo em tese na figura penal da incitação à prática de crime. Estariam incitando os militares a atuarem contra legem, a praticar o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (descrito no artigo 359-L do Código Penal) ou de golpe de Estado (artigo 359-M do mesmo Código).
No entanto, muitos que fazem esse pedido julgam-se amparados pela Constituição, em razão de uma determinada interpretação de seu artigo 142 que se popularizou por ter sido avançada por um jurista de inegáveis credenciais democratas, grande prestígio e respeitabilidade. Atuam, portanto, com aquilo que em Direito Penal chamaríamos de “erro de proibição”, um erro quanto ao que a norma legal autoriza ou permite: essas pessoas não querem atuar à revelia da Constituição, não têm um animus de golpe ou de incitação a golpe, não atuam com dolo golpista; querem, na verdade, segundo seu entendimento, ver a Constituição respeitada e cumprida, dirigindo-se à luz do dia à autoridade que poderia, segundo esse mesmo entendimento, atuar para fazer valer a regra legal. Fazem-no pacificamente, sem qualquer agressividade, como cidadãos de bem que querem o melhor para seu país. Apenas se equivocam, portanto, quanto ao sentido de uma norma constitucional. Mesmo quanto ao crime de incitação, que é o tipo penal em que em tese os manifestantes incorreriam, eles atuam na verdade com o que em doutrina se chama “erro de tipo”. O crime de incitação pressupõe, na sua formulação, a consciência de se estar sugerindo a prática de algo se se sabe ser crime. Ora, em suas consciências, não estão pedindo às Forças Armadas que violem a lei penal; ao contrário, estão solicitando, segundo suas consciências, volte-se a dizer, que estas cumpram o que consideram ser um papel que a lei garante aos militares.
O pedido por uma intervenção militar, quando baseado em uma interpretação equivocada do texto constitucional que julga ser legítima tal intervenção, não pode ser considerado incitação ao crime
Observe-se, de qualquer forma, quer se trate de erro de tipo ou de erro de proibição (e o leitor haverá de nos perdoar o tecnicismo, essencial no caso em tela), que se trata de erro de interpretação. Não mais censurável que os inúmeros erros recentes de interpretação incorridos pelos próprios ministros do Supremo Tribunal Federal. Não é difícil dar-se conta, por exemplo, de que o processo eleitoral de 2022 andou muito longe da normalidade que se esperaria para um país que ainda caminha para consolidar sua democracia. Os brasileiros têm todas as razões, por exemplo, para se indignar com o mero fato de Lula ter sido habilitado a participar desta eleição. Como afirmamos na noite de 30 de outubro, “em um país cuja história política é pródiga em bizarrices, podemos dizer com toda a certeza que nada supera a normalização da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República”. Uma pessoa que havia sido condenada em dois processos diferentes, em duas instâncias (com uma das condenações confirmada já na terceira instância), teve sua ficha tornada limpa novamente porque o Supremo simplesmente decidiu, anos depois, que os processos correram na cidade errada (revertendo, aliás, algo que os próprios ministros já haviam definido), anulando as condenações – sem falar de uma suspeição inventada contra o ex-juiz Sergio Moro, que teria tido o mesmo efeito de limpar a ficha de Lula caso o STF não tivesse criado o “erro de CEP”.
Erros de interpretação inaceitáveis também permeiam toda a escalada de agressões às liberdades democráticas e às garantias constitucionais promovida pelo Supremo em seus inquéritos abusivos: o das fake news, o dos “atos antidemocráticos” (já arquivado) e o das “milícias digitais”. A liberdade de expressão foi relativizada, a imunidade parlamentar foi abolida, brasileiros são perseguidos por opiniões que manifestam de forma reservada em grupos privados de aplicativos, perfis em mídias sociais são derrubados ou desmonetizados porque seus donos defendem posições legítimas, mas que batem de frente com supostos “consensos”. E, por fim, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deu novos motivos para os brasileiros reclamarem, ao desequilibrar a campanha eleitoral em favor do candidato petista com suas decisões que incluíram até mesmo censura prévia, sem falar do tabu criado em torno da lisura das urnas eletrônicas, criminalizando até mesmo questionamentos de ordem técnica. Não são poucos os brasileiros que julgam com toda a sinceridade ter havido irregularidades na votação ou na apuração, especialmente depois que um relatório do Ministério da Defesa não excluiu essa possibilidade, embora também não tenha encontrado provas de fraude.
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Ir às ruas por insatisfação contra a eleição de Lula ou para criticar a atuação dos tribunais superiores, em si, nada tem de antidemocrático. E quem o diz é a própria Lei dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, recentemente aprovada e que incorporou ao Código Penal a importante ressalva segundo a qual “não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”. As manifestações têm sido pacíficas e não têm violado outros direitos dos brasileiros.
O erro que consiste em pedir a intervenção das Forças Armadas, por outro lado, constitui, sim, como já afirmamos, algo objetivamente reprovável, mas sem que se possa falar propriamente, na maior parte dos casos, em atitude criminosa. Uma criminalização generalizada é completamente equivocada. É claro que, se por um lado, não há elementos para responsabilizar judicialmente quem se manifesta pedindo uma intervenção militar na crença de que ela tem amparo constitucional, situação muito diferente é a daqueles que, conhecendo corretamente os limites constitucionais das Forças Armadas, mesmo assim pedem um golpe, cientes de que a ruptura por eles desejada não tem amparo legal. Estes, sim, poderiam responder por incitação, mas para isso seria preciso investigar tais pessoas de forma individualizada, sem as “criminalizações por atacado” que estão marcando as respostas de formadores de opinião e de membros do Judiciário, que se julgam sabedores do que vai na consciência de cada um desses milhares de brasileiros a ponto de classificá-los todos como “golpistas”.
Não é pela repressão judicial ou pela indiferença da mídia que a mobilização desses brasileiros irá recuar. Os pedidos de golpe militar (mesmo daqueles que consideram, equivocadamente, ser essa uma possibilidade com amparo legal) não são razoáveis, mas vários outros motivos da insatisfação popular o são. Já afirmamos em várias ocasiões que não haverá pacificação possível para o Brasil se o Poder Judiciário, especialmente o STF, mantiver sua postura atual, com decisões que agridem o Estado Democrático de Direito. O fim dos inquéritos abusivos e das perseguições infundadas é uma primeira atitude fundamental para o apaziguamento; o mesmo podemos dizer de um maior esforço para oferecer respostas mais claras às dúvidas que ainda persistem a respeito do processo eleitoral. Simplesmente dar as costas a esses brasileiros, rotulando-os de “antidemocráticos”, não resolve o problema – pelo contrário, tenderá a agravar as tensões.
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