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O combate à miséria extrema só terá efeito se houver debate público, mas a população desconhece a cultura da pobreza

A secretária municipal de Ação Social (FAS), Márcia Fruet, anunciou, em entrevista à Gazeta do Povo publicada em 2 de março, a criação de mais albergues para moradores em situação de rua em Curitiba. É medida urgente. O movimento social indica perto de 3 mil pessoas em alto grau de mendicância na cidade. O principal centro de atendimento da fundação – na Rua Conselheiro Laurindo – tem 300 vagas e, nos dizeres da responsável pela pasta, foge às normas ao abrigá-los todos de uma vez. Somando os outros centros de atendimento, a prefeitura oferece um total de 600 vagas.

Educadores de rua e a sociedade organizada veem nos albergues uma espécie de entreposto para conter a pobreza extrema. Com o pão repartido vem a palavra, o vínculo, a reinserção. Comerciantes do Centro igualmente sonham com esses centros, talvez não pelos mesmos motivos. Entende-se que, como há mais atendimento no principal bairro da cidade, é para ele que acorrem homens e mulheres sem emprego e casa – não raro alcoolistas e dependentes químicos. Novos albergues, acredita-se, dividiriam o saldo da pobreza. Na melhor das hipóteses, permitiriam a essa população ficar mais perto dos seus familiares, o que facilitaria a ação social. O atendimento a alguém que chegou ao último estágio de abandono é difícil, sofisticado, de alta especialização.

Nada em se tratando da pobreza extrema é tão simples quanto parece ou quanto muitos gostariam que fosse. O povo da rua não é passivo nem se rende a afagos. Ainda que pareça. Parte dele se organiza em pequenas tribos, muitas delas preparadas para a argumentação e a resistência, não raro o confronto. Brigas entre os grupos são rotina. Com os educadores, também. A turma do resgate não esgota sua tarefa ao oferecer banho, cama limpa, um prato de comida e participação em núcleos de apoio. Precisa ter verdadeira vocação política para negociar com os segmentos mais esclarecidos, não raro críticos à ação social e hábeis em fazer pressão, inclusive para se manter onde estão, o que é próprio da sua psicologia.

Pena a sociedade saber tão pouco da queda de braço entre os representantes do poder público e os mendicantes – se de um lado valorizaria mais os agentes, de outro mudaria posturas ora refratárias, ora assistencialistas, muitas vezes faces da mesma moeda.

Grosso modo, a população gostaria de não ter mais moradores em situação de rua, ou que estivessem bem longe de suas vistas. Ignora-se que eles são tão antigos quanto a própria ideia de cidade. Que no vasto e rico Brasil são o extrato de uma sociedade que historicamente tolera índices vexaminosos de pobreza e que tem dificuldade de entender a habitação mais como direito que como conquista. Em meio a esse quadro mental, o povo da rua não é reconhecido como uma cultura própria, a exemplo dos clochards para os franceses, nem fonte de reflexão social. Resta-lhes oscilar entre invisíveis e incômodos, sendo vistos como um problema do Estado.

O resultado é a indiferença. Na sua pior face, indiferença redunda em violência. É barbárie. Sabe-se que a maior parte das agressões aos moradores em situação de rua nem sequer são registradas. São tão comuns que os mendigos tomam por medida viver em bandos, desenvolvendo o hábito de fazer guarita. Com medo, escolhem a dedo onde dormir – não só pelo conforto ou acesso à comida, mas pela visibilidade. Debaixo dos olhos, resguardam-se de agressores. O Brasil que lincha – e se fala pouco disso – também é o Brasil que maltrata e mata. Quem pensou em dizer que tudo isso se assemelha a uma guerra não errou.

Há um paradoxo, é claro. Entre os funcionários da Fundação de Ação Social diz-se, comumente, que os curitibanos são generosos. Não poucos adotam o povo da rua, servindo-os de roupa e comida, num sinal claro de compaixão e misericórdia. Para esses benfeitores, os imperativos da fome e do frio se sobrepõem a todo o resto. Ao mesmo tempo, essa prática promove uma perpetuação da miséria – e seus perigos, como o abuso de crianças e adolescentes e a drogadição. É conhecido o casal que vive na Praça Ouvidor Pardinho, no Rebouças, em companhia de um beagle. A família mora numa barraca de camping e recebe cuidados dos vizinhos. Os agentes de ação social não têm sucesso nesses casos.

Em miúdos, paira uma ingenuidade em torno da miséria. A ingenuidade tanto pode provocar autoritarismo quanto o paternalismo, mesmo que ser paternal tenha lá suas urgências. O único remédio é ampliar as campanhas, servindo à população elementos para entender os mecanismos da mendicância, de modo a fazer parte da ação social. É dever de todos. O trabalho da FAS, cujas qualidades são inegáveis, não deve se tornar mais uma caixa preta da administração pública. Se não tornar público o combate à pobreza e a perversidade a que estão sujeitos os miseráveis, terá repartido pães em vão.

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