Já há vários meses o presidente Jair Bolsonaro vem planejando formas de criar um programa social que sirva de marca para seu governo. Primeiro, veio o Renda Brasil, subitamente cancelado por Bolsonaro quando um dos secretários especiais do Ministério da Economia sugeriu congelar aposentadorias e pensões como forma de buscar recursos para o programa. Depois, foi a vez do Renda Cidadã, que acabou esquecido em meio aos debates sobre o orçamento de 2021. No fim, Bolsonaro passou a considerar um reforço no Bolsa Família, mantendo o nome criado por Lula para o programa que, longe de ser algo novo ou revolucionário (como tentou fazer crer o ex-presidente e ex-presidiário), consistiu na reunião de uma série de benefícios instituídos no governo de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.
Uma proposta de emenda à Constituição foi entregue pelo governo ao Congresso nesta segunda-feira, propondo uma elevação substancial do valor médio do benefício, que passaria dos atuais R$ 190 para até R$ 400 – os ministros da Casa Civil, Ciro Nogueira, e da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, foram os encarregados de levar o texto aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em encontro na residência oficial deste último. A ideia é boa – o problema está naquilo que não aparece na PEC do Bolsa Família, mas está em outra PEC apresentada simultaneamente.
Deixar de honrar uma dívida não tem outro nome a não ser “calote” – mesmo que haja verniz legal
O modelo do Bolsa Família, de transferência direta de dinheiro para a população mais vulnerável, é reconhecido e defendido inclusive por economistas liberais e elogiado por instituições como o Banco Mundial. É um programa simples e relativamente barato em comparação com outros tipos de benefícios. E respeita a liberdade do beneficiário, que decide como melhor empregar o valor recebido, algo que não ocorre quando, em vez do dinheiro, ele recebe itens previamente definidos pelo Estado. No caso brasileiro, condicionantes como a frequência escolar dos filhos são importantes ao criar condições para que ao menos as futuras gerações tenham mais chances de ascensão social. O desafio está em oferecer um valor que garanta um mínimo de dignidade aos beneficiários, com fiscalização forte para coibir irregularidades e garantir o cumprimento das condições para o recebimento do dinheiro.
No entanto, como já se sabia desde que o Renda Brasil vinha sendo cogitado, há uma dificuldade enorme em encontrar os meios de bancar um programa social mais robusto, daí a profusão de ideias bastante heterodoxas e com risco fiscal considerável. É aqui que entra a “irmã” da PEC do Bolsa Família: uma outra PEC que permitiria ao governo parcelar precatórios – dívidas da União cujo pagamento já foi definido pela Justiça. Para este ano, estão reservados R$ 55 bilhões para quitar essas dívidas; no ano que vem, vencem mais R$ 90 bilhões, valor bem superior ao que o governo esperava e que corresponde a praticamente toda a despesa discricionária, aquela que o Executivo pode escolher como gastar. Sem ter pagar toda essa quantia, haveria espaço para reforçar o Bolsa Família, nas contas do governo.
A ideia de usar dinheiro de precatórios para programas sociais não é novidade – solução parecida, e bastante criticada, já tinha sido cogitada quando se pensava no Renda Cidadã. O ministro Paulo Guedes tentou defender a proposta afirmando que o parcelamento não seria um calote, e que dívidas de até R$ 450 mil seriam pagas à vista. Ora, se um país aprova leis, por exemplo, suspendendo o pagamento de sua dívida externa, alguém deixaria de afirmar que houve calote apenas porque a suspensão tem apoio dos poderes Executivo e Legislativo? Guedes pode argumentar à vontade, mas a verdade é que deixar de honrar uma dívida não tem outro nome a não ser “calote” – mesmo que haja verniz legal. Se o governo realmente quiser transformar o “devo, não nego, pago quando puder” em política de Estado, o mínimo (e ainda assim inaceitável) é que tente fazê-lo para precatórios futuros; mas adiar o pagamento do que já está sacramentado no Judiciário é, sim, calote. E tanto o calote puro e simples quanto tentativas de embaralhar as regras e esticar ao máximo o pagamento de dívidas, à revelia do credor, têm consequências sérias para a reputação de um país diante do mercado financeiro.
Além, portanto, de ameaçar a confiabilidade do país, a proposta de parcelar precatórios para bancar programas sociais é uma maneira de escamotear sintomas sem atacar as causas da doença orçamentária brasileira: o excessivo engessamento dos gastos públicos, devido a inúmeras vinculações, indexações e obrigações que deixam parcela mínima da receita federal para que o governo a use como achar melhor. Justiça seja feita, Guedes defende e tentou aplicar os “três Ds” – desvincular, desindexar e desobrigar – em várias ocasiões, sendo sempre rechaçado pelo Congresso Nacional. Mas isso não justifica que o governo simplesmente jogue a toalha e passe a trabalhar com gambiarras orçamentárias para contornar as atuais limitações legais e gastar o que não pode e o que não tem – um exemplo desse truque está na previsão de um fundo abastecido a venda de ativos da União para saldar os precatórios, apesar de a Lei de Responsabilidade Fiscal vedar o uso desse tipo de receita para saldar despesas correntes, como é o caso dos precatórios.
Há algo de muito errado quando políticos encontram espaço no orçamento para tomar legalmente R$ 6 bilhões de recursos públicos para abastecer campanhas eleitorais, enquanto o reforço de uma renda para os brasileiros mais pobres precisa ser bancado com burlas ao teto de gastos, truques contábeis e o adiamento do cumprimento de obrigações legais, como é o caso dos precatórios. Melhorar o Bolsa Família é objetivo louvável, mas precisa ser atingido dentro das regras da responsabilidade fiscal, sem jogadas que erodem a confiança (que já não é grande) na capacidade brasileira de honrar seus compromissos.
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