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O compromisso pró-vida do governo: do discurso à ação
| Foto: Free Photos/Pixabay

Não parece surreal que, estando um brasileiro disposto a cometer um crime, possa realizá-lo às claras, declarando sua intenção, sem ser importunado, em uma instalação pública ou financiada com dinheiro público, e ainda exista um manual publicado pelo próprio governo com orientações sobre como se deve proceder neste caso, até mesmo obrigando agentes públicos a colaborar com a transgressão dependendo das circunstâncias? Pois algo assim existe no Brasil. E não para um crime qualquer, mas para a eliminação de seres humanos indefesos e inocentes.

Em 1998, quando Fernando Henrique Cardoso era presidente da República, o Ministério da Saúde, comandado por José Serra, publicou uma Norma Técnica chamada “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, com regras para o atendimento a mulheres vítimas de estupro e outros tipos de agressão sexual na rede hospitalar e demais instituições de atendimento à saúde. As diretrizes tratam, por exemplo, do atendimento psicológico, da profilaxia contra doenças sexualmente transmissíveis e de aspectos legais e éticos. Se os autores tivessem se limitado a esses pontos, estaríamos diante de um documento importante e necessário. No entanto, eles também incluíram uma série de orientações para a realização do aborto em caso de gestação resultante de estupro.

Este é, portanto, o momento de desfazer uma confusão muito frequente. Muitas pessoas, de boa fé, julgam que, por não ser punido, o aborto realizado para encerrar uma gravidez surgida após um estupro seria permitido pela lei. Para colocar a questão em pratos limpos, é preciso analisar o palavreado usado no texto legal. Ao dizer, no artigo 128, que “não se pune” esse aborto, o Código Penal não lhe retira o caráter criminoso; apenas afirma que o legislador, reconhecendo o enorme trauma que a mulher já carrega por ter sofrido a violência, optou por não aplicar-lhe a pena de prisão reservada nos artigos 124 e 126 do Código Penal – o outro caso previsto na lei penal é aquele em que a gestação coloca em risco a vida da mãe, e em 2012 o Supremo Tribunal Federal acrescentou o aborto em caso de feto anencéfalo.

A rede hospitalar e os recursos do contribuinte brasileiro podem e devem servir para o atendimento à mulher vítima de violência sexual, mas jamais para o cometimento de um crime

Um exame atento do Código Penal encontrará outras situações nas quais certa atitude continua a ser crime, embora sem punição, ou dando ao juiz a possibilidade de não aplicar pena. São exemplos o homicídio culposo em que o autor sofre de forma grave as consequências do ato (artigo 121, parágrafo 5.º); o furto de coisa comum, dependendo do seu valor (artigo 156, parágrafo 2.º); o crime de apropriação indébita previdenciária, dependendo do acusado (artigo 168-A, parágrafo 3.º); certos tipos de fraude (artigo 176, parágrafo único); e o crime de receptação qualificada, se o condenado é primário (artigo 180, parágrafo 5.º – note-se o uso do termo “criminoso”). Por outro lado, se o legislador quisesse legalizar o aborto em caso de estupro ou risco de vida para a mãe, ele não teria usado a expressão “não se pune”, e sim “não constitui crime”. Um caso emblemático em que as duas situações ocorrem é o do crime de injúria, descrito no artigo 140. No parágrafo 1.º deste mesmo artigo, afirma-se que o juiz pode escolher não punir a injúria provocada pela vítima ou que é resposta a uma injúria anterior (embora ela permaneça sendo crime). E logo depois, no artigo 142, surgem outras três circunstâncias que o senso comum pode enxergar como ofensas, mas que legalmente “não constituem injúria ou difamação punível”.

E, se muitos acabam confundindo as duas situações de boa fé, há os que, conscientes da diferença legal entre um e outro caso, promovem deliberadamente a confusão para impor o conceito falso de “aborto legal”. É essa ideia que permeia os trechos sobre aborto presentes na Norma Técnica, o que faz dela, no fundo, um documento oficial que dá orientações para o cometimento de um crime, ainda que não punido, aproveitando-se da confusão terminológica criada pelo abortismo. Para tornar a situação ainda mais inacreditável, a versão original, que exigia o boletim de ocorrência para a realização do aborto, foi alterada em 2005 (ou seja, no primeiro mandato de Lula) para dispensar até mesmo esta necessidade – bastaria que a gestante declarasse aos serviços de saúde que sua gravidez era resultado de estupro para que o crime de aborto pudesse ser cometido em um hospital. A Norma Técnica chega ao ponto de falsear a legislação alegando que “O Código Penal afirma que a palavra da mulher que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência deve ter credibilidade, ética e legalmente, devendo ser recebida como presunção de veracidade”, algo que simplesmente não existe na lei penal ou processual penal brasileira.

Para completar, no mesmo ano de 2005 a Norma Técnica ganhou a companhia da Portaria 1.508/2005 do Ministério da Saúde, que também trata do aborto em caso de gravidez resultante de estupro e traz uma série de termos que precisam ser preenchidos e assinados pela gestante e pelos profissionais responsáveis pelo atendimento. Como se não bastasse, portanto, que o crime seja cometido às claras, seguindo orientações do poder público, e bancado pelo contribuinte, cada etapa de sua realização ainda é fartamente documentada. Nem mesmo a ficção mais surrealista seria capaz de imaginar algo dessa natureza.

Que fique muito claro: a rede hospitalar e os recursos do contribuinte brasileiro podem e devem servir para o atendimento à mulher vítima de violência sexual, mas jamais para o cometimento de um crime – especialmente um crime bárbaro como o aborto, e que no caso da gestante violentada faz dela cúmplice na eliminação do próprio filho, impondo-lhe uma nova violência. O mero fato de se colocar a estrutura hospitalar à disposição para realizar tais atos como se legais fossem já é absurdo; que isso ainda seja feito naturalmente a ponto de o governo emitir orientações e restringir o direito à objeção de consciência dos médicos defensores da vida – obrigando-os, por exemplo, a “garantir a atenção ao abortamento por outro(a) profissional da instituição ou de outro serviço”, tornando-os colaboradores do ato contra a sua vontade – é um escárnio completo e inaceitável.

Queremos, com isso, dizer que preferimos a realização de abortos inseguros, em condições precárias? De forma alguma: desejamos é que se preservem as duas vidas, a da mãe e a da criança. Compreendemos que um filho gerado nessas circunstâncias se torne indesejado por ser uma lembrança perene do trauma sofrido (embora o testemunho de mães que tiveram seus filhos vá na direção oposta), mas o aborto está longe de ser a única escolha: há outras opções, como a de levar até o fim a gestação (com todo o apoio médico, psicológico e até financeiro, se preciso for, do Estado e, especialmente, da sociedade), encaminhando a criança para adoção – uma possibilidade que, aliás, também é descrita na Norma Técnica.

A pauta moral foi parte fundamental do tripé que levou os brasileiros a depositar sua esperança em Jair Bolsonaro na eleição de 2018, e é importantíssimo que o presidente mantenha a disposição em favor da vida. Ele pode fazer pouco, é verdade, caso soprem ventos abortistas na outra ponta da Praça dos Três Poderes, onde está o Supremo Tribunal Federal – a ação que buscava liberar o aborto em caso de gestante infectada pelo zika foi rejeitada, mas o abortismo tem seus defensores na corte, onde ainda corre a ADPF 442. Mesmo no Congresso os projetos de lei em defesa da vida estão parados, em boa parte por desejo do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Contrapondo-se ao ativismo judicial do Supremo e à paralisação da pauta pró-vida no Congresso, Bolsonaro afirmou em 23 de abril, diante do Palácio da Alvorada, que “enquanto eu for presidente, não haverá aborto”. Mas há, sim, abortos ocorrendo à luz do dia, financiados com dinheiro do contribuinte e seguindo orientações emanadas do próprio poder público – orientações essas que deixam brechas gigantescas para a realização de abortos que nem mesmo se enquadram nos casos não punidos pela lei. A revogação desta Norma Técnica e da Portaria 1.508, substituindo-as por um texto que ampare a mulher vítima de violência ao mesmo tempo em que defende a vida do nascituro, é algo que só depende do Poder Executivo. Hora de transformar o discurso em ação.

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