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Carreata em Curitiba pelo fim do isolamento social, em 27 de março: em Goiás e Maranhão, manifestações desse tipo estão proibidas.
Carreata em Curitiba pelo fim do isolamento social, em 27 de março: em Goiás e Maranhão, manifestações desse tipo estão proibidas.| Foto: Vivian Faria

Uma parcela da população que defende o chamado “isolamento vertical”, com o relaxamento imediato ou gradual (desde que iniciado o quanto antes) das medidas restritivas ordenadas por governos estaduais e municipais para conter a disseminação do coronavírus, resolveu se organizar e promover manifestações pleiteando a revisão das diretrizes de governadores e prefeitos. No entanto, uma série de decisões judiciais está proibindo esse tipo de protestos, incluindo até mesmo carreatas, muitas das quais tiveram de ser desmarcadas, com perigosas consequências para a liberdade de expressão em nome de um suposto zelo pela saúde pública. No Maranhão e em Goiás, por exemplo, a Justiça proibiu quaisquer manifestações, enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro as decisões tinham como alvo eventos específicos que vinham sendo organizados pelas mídias sociais.

Por mais que, em nenhum dos casos em pauta, os magistrados tenham invocado o objetivo das manifestações, e sim as circunstâncias em que elas se dão, não custa nada recordar que o poder público jamais poderia coibir os protestos simplesmente por pedirem a reabertura dos estabelecimentos comerciais e industriais. Não era objetivo dos organizadores incentivar empresários a levantar as portas em desafio às determinações estaduais ou municipais, e sim pressionar prefeitos e governadores a rever seus decretos e estabelecer o isolamento vertical.

A proibição de carreatas, em que o risco de contágio é mínimo ou inexistente, é uma perigosa violação das liberdades de expressão e de reunião previstas na Constituição Federal

Um paralelo pode ser feito com um caso emblemático que chegou até o Supremo Tribunal Federal: o da Marcha da Maconha. Esse tipo de manifestação tinha como objetivo protestar em favor da mudança nas leis que tratam da posse, uso e comércio da droga – os próprios organizadores pediam aos participantes que não levassem drogas ao evento, ressaltando que não pretendiam fazer apologia ao uso da maconha, nem a qualquer atividade criminosa. Em 2011, o STF decidiu pela legalidade desse tipo de manifestação, derrubando decisões de instâncias inferiores que vinham proibindo as Marchas da Maconha havia alguns anos. Em resumo: pedir a revisão de leis ou determinações estatais é diferente da apologia ao crime ou ao descumprimento de medida do gestor público; esta pode ser coibida pelo Estado, mas aquela não, independentemente da opinião que qualquer um de nós ou os magistrados tenham sobre a maconha, o isolamento vertical ou qualquer outro tema que venha a ser pauta de reivindicação popular.

Recordado este princípio, resta-nos agora analisar o caso específico das manifestações pela reabertura dos estabelecimentos durante a quarentena do coronavírus, e a pergunta que precisa ser feita para analisar o acerto ou o erro das decisões judiciais é: que tipo de protesto estava sendo convocado? Várias cidades e estados determinaram, além do fechamento dos estabelecimentos não essenciais, a suspensão de eventos que resultassem em aglomeração de pessoas, dado o elevado risco de contágio pelo coronavírus. Assim, um protesto que procurasse reunir manifestantes em algum ponto específico de determinada cidade estaria ocorrendo em descumprimento às restrições impostas pelo poder público, justificando uma intervenção judicial em face do risco à saúde pública.

No entanto, a maioria dos atos que foram alvo das recentes medidas judiciais consiste em carreatas, a forma de protesto escolhida pelos organizadores justamente porque não causa aglomerações e, desde que não haja interação entre os ocupantes de veículos diferentes, praticamente elimina os riscos de contágio. Aqui já não cabe falar em ameaça à saúde pública nem em desrespeito a determinação estadual ou municipal, motivo pelo qual a proibição desse tipo de manifestação – sempre que não resulte ou seja acompanhada de aglomeração de pessoas fora dos veículos, há de se reforçar – é uma perigosa violação das liberdades de expressão e de reunião previstas nos incisos IV e XVI do artigo 5.º da Constituição Federal.

Como já lembramos neste espaço por ocasião dos bloqueios estabelecidos por governos estaduais e municipais em rodovias e demais acessos, há motivos mais que razoáveis para medidas que preservem a saúde pública, mas qualquer restrição a liberdades fundamentais só pode ser adotada em circunstâncias muito específicas. O excesso de zelo na tentativa de evitar mais contaminações e mortes traz consigo a tentação de abolir, ainda que temporariamente, essas liberdades. Não é deixando o vírus do arbítrio circular livremente que conseguiremos vencer o coronavírus.

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