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Os ministros do STF Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.
Os ministros do STF Alexandre de Moraes, Barroso, Lewandowski e Marco Aurélio: dois deles contra a tese que poderia levar à aprovação da bigamia e dois a favor.| Foto: Nelson Jr/STF

Chegou ao Supremo Tribunal Federal um caso que, a depender do seu desfecho, significará, na prática, o reconhecimento da bigamia no Brasil – um desdobramento que vai muito além dos chamados “direitos da amante” já defendidos por correntes do direito de família brasileiro. A corte tem cinco votos a favor e três contrários à divisão de uma pensão por morte entre duas pessoas que tinham relacionamento com o falecido. O julgamento começou nesta quarta-feira, dia 25, mas foi suspenso e não tem data para ser retomado – a decisão que sair dali tem repercussão geral, ou seja, servirá de baliza para todas as situações semelhantes que surgirem daqui em diante.

O caso ocorreu em Sergipe, onde um homem que vivia com uma mulher (e com ela tinha um filho) também mantinha um relacionamento paralelo homossexual. Quando o homem faleceu, a mulher solicitou e conseguiu o reconhecimento da união estável – e, com isso, todas as consequências legais de tal constatação, como o direito a receber a pensão por morte. O parceiro homossexual, então, fez o mesmo pedido, que foi negado pelo Tribunal de Justiça sergipano sob a alegação de que a legislação brasileira consagra a união monogâmica, princípio que seria violado caso se reconhecessem duas uniões estáveis simultâneas. O parceiro homossexual recorreu e o caso chegou ao STF. Os autos do processo, afirmou-se durante o julgamento, não permitem identificar qual dos dois relacionamentos era mais antigo; sabe-se apenas que a primeira a buscar a Justiça para atestar a união estável tinha sido a mulher.

A divisão da pensão, neste caso específico, é indissociável do reconhecimento implícito de duas uniões simultâneas

Relator do processo, o ministro Alexandre de Moraes votou por manter a decisão do TJ-SE, embasando-se na “consagração da monogamia pelo ordenamento jurídico constitucional brasileiro” e no fato de que, se o pedido do parceiro fosse aceito, a Justiça estaria aceitando “a possibilidade de concomitância de dois ou mais vínculos e de retroatividade da bigamia”. Seu voto foi seguido por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. O relator ressaltou que a orientação sexual, aqui, não influencia em nada o que está em jogo: basta afirmar que não se pode reconhecer duas uniões estáveis simultâneas, independentemente de serem uniões homoafetivas ou heteroafetivas.

A divergência foi aberta pelo ministro Edson Fachin, para quem a discussão é meramente de direito previdenciário, e não de direito de família. Ou seja, aceitar a divisão da pensão por morte não equivaleria a legitimar a bigamia, ainda que “retroativa”, para usar as palavras de Alexandre de Moraes. O voto de Fachin foi seguido por Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio Mello. Barroso argumentou que, “mesmo que se admita que a monogamia seja um princípio constitucional, ela claramente vale só para o casamento”, e que “nenhuma lei diz que você, vivendo em união estável, não possa ter outra união estável”.

É aqui que Barroso se engana. A lei pode não usar exatamente os mesmos termos que o ministro empregou em seu voto, mas a defesa da monogamia e da exclusividade nas uniões está implícita na legislação. A argumentação de Barroso se apoia em uma interpretação do Código Civil, que, no artigo 1.723, parágrafo 1.º, diz que os impedimentos para a união estável são os mesmos do casamento, definidos no artigo 1.521 e que incluem “VI – as pessoas casadas”. Já que o inciso não se refere a pessoas em união estável, não haveria impedimento à existência de duas uniões estáveis concomitantes. No entanto, quando o artigo 226 da Constituição afirma, no parágrafo 3.º, que, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”, e acrescenta, no parágrafo 5.º, que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”, esses deveres obviamente incluem a exclusividade, vedando a existência de duas relações simultâneas reconhecidas pelo Estado. E aqui está o cerne da questão: é impossível admitir o recebimento da pensão sem que também se admita que havia união estável. Portanto, e ao contrário do que argumenta Fachin, a divisão da pensão, neste caso específico, é indissociável do reconhecimento implícito de duas uniões simultâneas. Em outras palavras, estar-se-ia, sim, aceitando uma situação de bigamia.

É sumamente grave que se esteja usando uma questão previdenciária para, no fundo e sem admiti-lo abertamente, avançar no reconhecimento de supostas “novas configurações familiares”, ao arrepio do que afirmam a Constituição e as leis infraconstitucionais. Abrir o precedente neste caso significa, na prática, escancarar as portas ao reconhecimento – e à proteção! – estatal de relações simultâneas, bastando que não sejam casamentos, mas uniões estáveis. Agir assim é buscar nas entrelinhas da lei brechas para minar uma característica fundamental das famílias, o fato de que só o amor exclusivo dá conta de nossos anseios mais profundos, uma verdade moral tão avassaladora que também ganhou amparo legal.

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