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| Foto: Gilson Borba/Estadão Conteúdo

Cidadãos indefesos e a polícia “fascista” longe das ruas. O que é o sonho de muitos ideólogos se mostrou, na vida real, o pesadelo da população do Espírito Santo, que desde o último sábado convive com um caos generalizado digno daquilo que se convencionou chamar de “Estados falidos”, aqueles onde já não existe o império da lei. Os homicídios dispararam – a Grande Vitória já conta 90 mortes só neste período, contra quatro em todo o mês de janeiro –, assaltos e saques ocorrem a qualquer hora do dia, os serviços de educação e saúde foram interrompidos, o transporte público deixou de circular. Só a chegada das Forças Armadas e da Guarda Nacional trouxe de volta algum grau de normalidade, embora muitos estabelecimentos comerciais sigam fechados e sair à rua continue sendo uma aventura não apenas em Vitória, mas em várias outras cidades do estado.

Esse caos só se instalou por um misto de esperteza e irresponsabilidade dos policiais militares daquele estado, que, descontentes com salários, condições de trabalho e benefícios, mas impossibilitados de fazer greve por determinação do artigo 142 da Constituição Federal, colocaram suas famílias para “impedir” a saída das viaturas dos quartéis. Trata-se, na prática, de “greve branca”, rapidamente reconhecida pelo desembargador Robson Albanez, da Justiça capixaba, que determinou o fim dos piquetes nas portas dos batalhões sob pena de multa às associações de PMs, cujos representantes reagiram com afirmações como “o policial militar quer trabalhar, mas a família pode se manifestar”, dita por um major ao portal noticioso G1. Difícil acreditar.

Se os PMs pudessem fazer greve, na prática ganhariam o direito de fazer a sociedade de refém

Existe uma razão muito simples para a legislação proibir os policiais militares e os membros das Forças Armadas de fazer greve: são essas categorias as responsáveis pela manutenção da lei e da ordem; sem elas, o próprio Estado Democrático de Direito corre risco. Por isso, a vedação constitucional está longe de ser uma arbitrariedade; ela é uma garantia de que o Estado terá à disposição o poder de coerção necessário para coibir o crime e a ilegalidade, permitindo que a sociedade funcione adequadamente. Se os policiais militares tivessem a possibilidade legal de fazer greve, na prática ganhariam o direito de fazer a sociedade de refém, deixando-a completamente indefesa diante de ameaças à vida, à saúde e ao patrimônio dos cidadãos – justamente o que está ocorrendo agora no Espírito Santo e já aconteceu em outros estados, como Pernambuco e Bahia, onde PMs desafiaram a lei em 2014.

Isso não significa, é claro, que policiais não possam fazer chegar aos governos estaduais suas insatisfações e reivindicações. Devem fazê-lo, no entanto, cientes de que seu trabalho tem um caráter essencial que torna sua realização absolutamente necessária. Em vez disso, essa necessidade está sendo vista como fator de chantagem: sabedores do quão importante é seu papel, os PMs ameaçam governos temerosos de perder capital político se deixarem o caos se instalar.

Episódios como a “greve branca” de policiais no Espírito Santo são mais um sintoma do déficit democrático de que temos tratado em várias outras ocasiões: uma erosão às vezes sutil, às vezes explícita, do respeito pelos direitos dos outros, soterrados por vontades pessoais, de um pequeno grupo ou de determinada classe. O bem comum deixa de ser um objetivo a ser perseguido, e direitos fundamentais como o de poder sair às ruas com tranquilidade ou manter seu negócio funcionando são praticamente abolidos em nome do interesse de uma categoria. Urge recuperar a noção de que nem mesmo os melhores ideais e as reivindicações mais nobres justificam a negação do direito alheio.

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