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Na noite de 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, os brasileiros ouviram pelo rádio o então ministro da Justiça, Antonio Gama e Silva, ler o texto do Ato Institucional 5 (AI-5). A ditadura militar instalada em março de 1964 chegava ao seu auge, com o fim das liberdades e garantias individuais. Pelo texto, o presidente da República estava autorizado a dissolver o Congresso Nacional, assumindo as funções legislativas, e também podia cassar mandatos eletivos, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por 10 anos e decretar confisco de bens.

Além disso, o habeas corpus deixava de existir “nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”, e as garantias dadas a membros do Poder Judiciário também estavam revogadas. Embora não tivesse sido expressamente mencionada no AI-5, a censura à imprensa viria em sua esteira: um decreto-lei publicado em 1970 apenas regulamentava o que já tinha se tornado prática comum – já naquele 13 de dezembro, a sede do jornal O Estado de S.Paulo tinha sido invadida e exemplares haviam sido apreendidos.

O estopim do AI-5 não veio de nenhum ato terrorista, mas da resistência do Congresso a uma tentativa de punir um deputado por um “crime de opinião”.

O que ocorreu a partir daí está fartamente documentado e ainda perdura na memória de quem viveu aquela época: toda uma população submetida ao autoritarismo, ainda que dele não se desse conta. A aparente tranquilidade exaltada por tantos que passaram pelos anos de chumbo, simbolizada nas descrições de passeios noturnos sem medo da bandidagem, cobrava um preço caro na figura de deputados cassados; juízes que tiveram de deixar a toga; artistas, intelectuais, escritores e jornalistas perseguidos e censurados. Sem falar, evidentemente, nas centenas de brasileiros desaparecidos, torturados e executados nos porões de instalações de Exército, Marinha, Aeronáutica e polícias, mesmo que não tivessem cometido crime algum ou não tivessem vinculação nenhuma com os grupos terroristas de esquerda que atuavam no Brasil.

Por mais que estejamos muito distantes de ressuscitar aqueles dias – ao contrário do que previa a retórica eleitoral esquerdista e apesar da inaceitável defesa que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, fez do uso da tortura pela ditadura militar em ocasiões anteriores –, não temos como não nos preocupar com as tentativas de relativização da gravidade ou das motivações do AI-5 feitas por generais eleitos para a Câmara dos Deputados. “A conjuntura, infelizmente, com os movimentos revolucionários armados, fez com que Brasil precisasse do AI-5 para manter a democracia e se contrapor ao comunismo”, disse Eliéser Girão Monteiro Filho (PSL-RN). “Para aquele contexto, talvez, tenha sido uma medida necessária. O governo não tinha opção”, afirmou Roberto Sebastião Peternelli Junior (PSL-DF).

Que o terrorismo de esquerda atuava no Brasil é inegável. Na cidade e no campo, diversos grupos buscavam derrubar os militares pela via armada. Mesmo antes que alguns integrantes desses grupos chegassem ao poder com o PT, em 2003, já se espalhava a mentira segundo a qual eles haviam lutado para “defender a democracia”, com a consequente exaltação de terroristas como Carlos Lamarca e Carlos Marighella, tratados como heróis. Na verdade, sua luta era para estabelecer outra ditadura, comunista – algo que só poucas vozes mais lúcidas na esquerda, como Fernando Gabeira, admitiram posteriormente.

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Mas a própria história do AI-5, no entanto, mostra que seu estopim não veio de nenhum ato terrorista, mas de um discurso na Câmara dos Deputados e da resistência do Congresso a uma tentativa de punir um deputado por um “crime de opinião”. Às vésperas do Sete de Setembro, após uma ação do Dops na Universidade de Brasília, o deputado Márcio Moreira Alves usou a tribuna para pedir a pais e mães que não mandassem seus filhos à rua para desfilar com as unidades militares, e ainda sugeriu um boicote inspirado na peça grega Lisístrata: que as garotas não dançassem com os cadetes. O procurador-geral da República acionou o Supremo Tribunal Federal, que pediu ao Congresso a permissão para processar Moreira Alves. Em 12 de dezembro, por 216 votos a 141, com apoio inclusive de partes da Arena, o partido governista, a Câmara negou o pedido do STF. No dia seguinte, o governo mandaria “às favas todos os escrúpulos de consciência”, nas palavras do ministro Jarbas Passarinho.

Além disso, se o objetivo do AI-5 era possibilitar ao governo o combate ao terrorismo de esquerda, como hoje argumentam os generais-deputados, em que sentido as medidas implantadas naquele ato ou por ele inspiradas – possibilidade de fechamento do Congresso, suspensão de direitos políticos, censura à imprensa – poderiam ajudar a ditadura a erradicar os grupos guerrilheiros? Difícil acreditar nesta explicação quando se colocam lado a lado os objetivos hoje alegados e os meios escolhidos para tanto, estes claramente sem conexão com aqueles.

Em um país onde a autocrítica é item tão escasso nas prateleiras, seria muito salutar que os membros das Forças Armadas que insistem em defender o indefensável deixassem de lado essa insistência em manter a ferida aberta, finalmente admitindo que o AI-5 foi, de fato, uma arbitrariedade sem precedentes na história do Brasil com o objetivo de fortalecer a ditadura e calar toda e qualquer discordância, ainda que feita de modo pacífico. Não há demérito algum em reconhecer que o AI-5 foi uma enorme violência contra o Brasil e os brasileiros, nestes dias em que recordamos o cinquentenário desta página triste da história nacional.

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