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| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Houve um tempo em que impeachment era golpe. Mesmo previsto na Constituição, mesmo com as acachapantes evidências de crime de responsabilidade cometido pelo mandatário, submetê-lo a um processo de impeachment era violar a vontade de 54,5 milhões de eleitores, que apertaram 13 na urna eletrônica e viram aparecer nela a foto de Dilma Rousseff. Mas, aparentemente, quem pensava assim mudou de ideia. Os mesmos que gritavam (e ainda gritam) contra o “golpe” já protocolaram vários pedidos de impeachment de Michel Temer – ainda que sua foto também tenha aparecido nas urnas eletrônicas 54,5 milhões de vezes, ainda que o Código Eleitoral afirme, em seu artigo 178, que “o voto dado ao candidato a Presidente da República entender-se-á dado também ao candidato a vice-presidente”.

Houve um tempo, também, em que delações premiadas eram desqualificadas como um recurso desesperado de quem tinha culpa no cartório e desejava uma pena mais branda. “Não respeito delator”, afirmou Dilma Rousseff. O deputado petista Wadih Damous chegou a chamar a delação premiada de “chantagem” e “tortura”. Mas a delação premiada de Joesley e Wesley Batista, donos da JBS, que colocou na corda bamba o mandato de Michel Temer, não está sendo vista com tanta severidade – a delação, de “prostituta das provas”, passou a ser a base justamente daqueles pedidos de impeachment protocolados na Câmara.

Os mesmos que gritavam contra o “golpe” já protocolaram vários pedidos de impeachment de Michel Temer

Houve um tempo, ainda, em que gravar um presidente da República era algo absolutamente inaceitável. Dilma Rousseff disse que, em outros países, quem grampeia presidentes sem autorização vai preso, ignorando o fato de que o grampeado em questão fosse outro, e a presidente tivesse aparecido nas gravações por puro acaso, não sendo ela a investigada. Mas a avaliação moral sobre gravar presidentes da República mudou radicalmente desde quarta-feira: a gravação de Joesley Batista, que registrou sua conversa com Michel Temer, passou a valer ouro puro nas mãos dos opositores do presidente. Que bom, raciocinam, que o dono da JBS teve essa iniciativa, pois do contrário ficaria muito mais difícil incriminar Temer.

Se tudo isso muda, só o que não muda é a capacidade da esquerda de adotar duplos padrões. As agências de classificação de risco que deram ao Brasil o grau de investimento, no governo Lula, eram elogiadas por reconhecer aquele bom trabalho nunca antes feito neste país. Mas, quando as mesmas agências tiraram do Brasil o grau de investimento – tardiamente, já que os sinais da recessão vinham desde 2014 –, os petistas chamavam as classificações de “firulas” e diziam que as agências deviam cuidar da própria vida e deixar o Brasil em paz. Da mesma forma, o governo do PT sempre foi bem compreensivo com a baderna promovida pelo MST e outros movimentos-satélites, mas de repente lembrou-se de que precisava manter a lei e a ordem quando as estradas foram paralisadas por caminhoneiros em protesto contra Dilma.

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Se agora impeachment é a democracia em ação, se delação premiada é ferramenta importante de investigação e se gravar presidentes é coisa boa e meritória, que os defensores de Lula e Dilma que hoje pedem “fora, Temer!” (e, sim, há razões fundamentadas para pedir a saída do presidente) digam se, no passado, estiveram enganados a respeito de todos esses assuntos quando chamavam impeachment de golpe, delação de tortura, e gravação de abuso de autoridade. Das duas uma: ou mostrarão coerência ou mostrarão que avaliam ações e decisões não pelo que elas são em si, mas unicamente pelos personagens envolvidos, se são dos “nossos”, aos quais tudo se permite, ou dos “deles”, aos quais se reserva o porrete da lei. As pessoas costumam chamar isso de “hipocrisia”.

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