O Senado finalmente decidiu, pelo resultado expressivo de 61 votos a 20, cassar definitivamente o mandato da agora ex-presidente da República Dilma Rousseff. Um desfecho que, sem dúvida alguma, pede comemoração, mas a sessão que confirmou o fim de quase 14 anos de petismo no Planalto acabou manchada por uma autêntica gambiarra jurídica costurada entre o PT, seus partidos-satélites e os senadores do PMDB, com o objetivo de consagrar a impunidade. O plenário do Senado decidiu que Dilma cometeu, sim, crime de responsabilidade e deveria perder o mandato, mas, em uma segunda votação, preservou seus direitos políticos. A ex-presidente pode assumir função pública – por nomeação, por exemplo – e não chegaria nem a ficar inelegível.
Logo no início da sessão de quarta-feira, o senador Humberto Costa, falando pela bancada do PT, propôs o golpe: que a inabilitação de Dilma fosse votada em separado, como destaque. Senadores de outros partidos, como Randolfe Rodrigues, da Rede, usaram a palavra para defender a ideia e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, aceitou o fatiamento. Não adiantou nem mesmo a manifestação do também senador e ex-presidente da República Fernando Collor, que recordou a legislação e a jurisprudência do STF quando do seu próprio processo de impeachment, em 1992. Na ocasião, Collor renunciou antes da votação no Senado, mas perdeu o direito de exercer função pública por oito anos.
Confirmada a cassação de Dilma na votação do impeachment, o presidente do Senado, o peemedebista Renan Calheiros, abandonou todo e qualquer pudor, pronunciando-se publicamente contra a suspensão dos direitos políticos da presidente cassada. Naquele momento, esvaiu-se qualquer dúvida que alguém ainda pudesse ter sobre a participação dos senadores do PMDB na combinação espúria que levaria ao resultado observado minutos depois: a maioria do Senado até continuou contra Dilma, mas os 42 votos não foram suficientes para ratificar a pena de oito anos de inabilitação, pois era necessária a mesma maioria de dois terços exigida para o impeachment, ou seja, 54 votos.
A inabilitação é automática em caso de cassação. Não existe outra interpretação possível
Na mesma sessão que deveria consagrar uma vitória da moralidade e da democracia, rasgou-se a Constituição em nome da impunidade. A Carta Magna é inequívoca sobre o tema no parágrafo único do artigo 52: “Nos casos previstos nos incisos I e II [julgamentos por crimes de responsabilidade], funcionará como presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. Em outras palavras, a inabilitação é automática em caso de cassação. Não existe outra interpretação possível, e foi assim que o STF decidiu no Mandado de Segurança 21.689, que tratou do caso de Collor. Na ocasião, o Supremo avaliou que “No sistema atual, da Lei n.º 1.079, de 1950, não é possível a aplicação da pena de perda do cargo, apenas, nem a pena de inabilitação assume caráter de acessoriedade (...) A preposição ‘com’, utilizada no parágrafo único do art. 52, acima transcrito, ao contrário do conectivo ‘e’, do § 3º, do art. 33, da CF/1891, não autoriza a interpretação no sentido de que se tem, apenas, enumeração das penas que poderiam ser aplicadas. Implica, sim, a interpretação no sentido de que ambas as penas deverão ser aplicadas”.
Mas é óbvio que Calheiros e seus asseclas não estavam pensando em Dilma, contra quem não há – pelo menos por enquanto – acusações de crime comum. Violaram a Constituição pensando em si mesmos, pois, com a Operação Lava Jato em seus calcanhares, correm o risco de também eles perderem seus mandatos. O golpe promovido na tarde desta quarta-feira lhes dá a chance de sair com um prêmio de consolação: a preservação de seus direitos políticos. Uma decisão que beneficia inclusive o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, tão criticado em público por Dilma e seu advogado, José Eduardo Cardozo, nestes dias finais do impeachment. Apesar do palavrório dilmista, quem há de garantir que o próprio Cunha não tenha participado da trama urdida por petistas e peemedebistas?
Senadores do PSDB e Democratas chegaram a anunciar a intenção de recorrer ao STF contra a decisão, mas recuaram – atitude questionável, pois é preciso que a corte seja provocada para que possa restabelecer a punição prevista pela lei maior do país. A decisão de quarta-feira é claramente inconstitucional e consagra a impunidade – tudo de que o país não precisa neste momento.
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